27.9.05

"Por que realizar uma obra, se é tão belo apenas sonhá-la?", questiona Pier Paolo Pasolini em Decameron (Decameron, 1972). Peter Greenaway, em A Última Tempestade, transforma os delirantes sonhos vingativos de Prospero (John Gielgud), Duque de Milão exilado em ilha distante com sua filha e seus livros, em fatos reais, para refletir acerca da criação artística, ao mesmo tempo angelical e diabólica, pois, embora capaz de gerar a beleza redentora e de absorver todo o conhecimento do mundo, traz consigo, inseparável, o poder do artista, tanto sobre a obra e os personagens, quanto sobre o público para quem se dirige.
Peter Greenaway adapta A Tempestade, de William Shakespeare: a biblioteca com que Prospero é exilado - pelo próprio irmão, que lhe toma o ducado para aliar-se ao Reino de Nápoles - permite ao cineasta inglês instaurar a intensa intertextualidade que caracteriza seus filmes, visualmente expressa através do aproveitamento da superfície do quadro - sobreposição e divisões de imagens dentro da tela, uso gráfico dos textos, quebrando a linearidade temporal da narrativa ao estilhaçar o espaço para aproximá-lo da tela do computador, hipertextual por excelência, com links que remetem sempre a outros links. Dessa forma, enquanto Prospero, cercado por figuras mitológicas (sobretudo Ariel e Calibã, o Anjo e o Demônio, respectivamente), escreve a trama de vingança, Greenaway aproveita para relacionar a obra em gestação com todos os livros que ajudaram a construir o imaginário do artista, que agora se apropria e se utiliza da rede de signos conhecida a priori a fim de criar o novo, ato em si mágico, misterioso e inexplicável, exprimindo os sonhos fantásticos que lhe atravessam a alma e o corpo.
A Última Tempestade, no entanto, não cai nas autocitações vazias que marcam, por exemplo, Oito Mulheres e Meia (Eight and A Half Women, 1999) e As Maletas de Tulse Luper, A História de Moab (The Tulse Luper Suitcases, The Moab Story, 2003), em que Peter Greenaway se preocupa somente com o próprio umbigo. Se em Oito Mulheres e Meia cada seqüência se inicia com a página do roteiro que a origina - de modo que a cena fecha-se sobre si mesma - , e se em As Maletas de Tulse Luper, A História de Moab há a onipresença de referências às obras anteriores do cineasta - a repetição do mesmo acontecimento três vezes, bem como a reaparição da personagem Cissie Colpitts, as quais se ligam a Afogando em Números (Drawning by Numbers, 1988), ou o fato de Tulse Luper ter escrito o roteiro de A Barriga do Arquiteto (The Belly of an Architect, 1987) - , em A Última Tempestade, ao contrário, os livros que pontuam a narrativa acabam por estruturá-la, na medida em que (como aponta a seqüência na qual Prospero os destrói, lançando-os na água, para possibilitar que a peça de Shakespeare enfim surja) eles se referem à alquimia que transforma chumbo em ouro.
É a arte enquanto bruxaria, que materializa as páginas escritas por Prospero, que torna reais os delírios do protagonista, que faz da vingança caminho, através do amor entre Miranda (Isabelle Pasco) e Ferdinand (Mark Rylance), para o perdão e, em conseqüência, para a redenção. Movimento, contudo, inusitado no cinema de Greenaway que, em geral, prefere o humor negro a fim de revelar o cinismo das relações pessoais e dos códigos sociais que as pautam, seja na mãe e nas filhas que matam os maridos em Afogando em Números; seja no estupro coletivo como método de punição à falsa gravidez em O Bebê Santo de Macon (The Baby of Macon, 1993); seja no exótico jantar servido ao final de O Cozinheiro, O Ladrão, Sua Mulher e o Amante (The Cook, The Thief, His Wife and Her Lover, 1989). Trata-se, por certo, de mostrar o poder que perpassa e que desequilibra o contato entre os homens, visto que os desiguala: na disputa pelo controle da exposição entre Stourley Kracklite (Brian Dennehy) e Caspasian Speckler (Lambert Wilson) em A Barriga do Arquiteto; nos enquadramentos precisos e arbitrários de Mr. Neville (Anthony Higgins) para seus desenhos, aos quais dispensa a mesma violência com a qual chantageia sexualmente aquela que o emprega em O Contrato do Amor (The Draughtman’s Contract); na obsessão de Greenaway pelos números, que servem para ordenar, para sistematizar e, por fim, para anular qualquer afeto ou sentimento dos personagens neles imersos.
Conforme evidenciam tanto o pré-cineasta encarnado por Mr. Neville, quanto Nagiko (Vivian Wu), a qual domina os corpos dos amantes ao usá-los como páginas em O Livro de Cabeceira (The Pillow Book, 1996), a arte se constrói enquanto estratégia de controle. Prospero, em A Última Tempestade, detém o poder sobre os personagens que cria, pois, literalmente (é o próprio John Gielgud quem fala por eles), dá-lhes voz. Para perpetrar sua vingança, escraviza Ariel e Calibã. Frente à rebelião do segundo - a qual marca a independência progressiva das demais figuras em cena do jugo do artista - , resta a Prospero apenas a obediência do primeiro, a quem promete libertar caso o objetivo a que se propõe seja alcançado.
Ariel, mas também Prospero, pois enquanto Ariel executa as ações no mundo imaginado por Prospero, este igualmente representa a ponte entre o universo cinematográfico visto na tela e o público para o qual ele se destina. De maneira que a liberdade de Ariel liga-se a de Prospero, o qual a adquire quando reconhece que não há onipotência na criação, quando, paradoxalmente, abandona o papel de criador para abraçar o de personagem: os sonhos do artista - de Prospero, de Greenaway - como veículos para incitar os sonhos dos espectadores, verdadeiros senhores a quem o cinema se subordina.

Paulo Ricardo de Almeida



A Fúria Poética dos Signos em A Última Tempestade

Pedro Nunes.

1. Palavra, Imagem & Tecnologia
A primeira imagem de A Última Tempestade é uma gota de água que cai sobre a própria água com o seu equivalente acústico. Essa mesma imagem se intercala mais duas vezes com os letreiros iniciais para, logo na cena seguinte, ser materializado ao espectador um plano detalhe de uma mão que se desloca e escreve palavras esculpindo caligraficamente letra a letra. A imagem cinematográfica da escrita também possui o seu correspondente sonoro na voz de Próspero, que repete de maneira solene o que esta sendo escrito. Esse inicio do filme não é o início de A Tempestade: refere-se ao trecho do diálogo de Próspero com sua filha Miranda acerca de seus livros trazidos para o exílio. Essa mesma imagem-detalhe, da palavra escrita e oral, também se alterna com a imagem sonora da gota de d’água que cai como prenúncio associativo da cena posterior, o Livro da Água, cujas páginas que viram automaticamente são ilustradas por superposições eletrônicas, grafismos, textos, desenhos envelhecidos, detalhes da mão de Próspero, com janelas que se metaforseiam no interior da própria página, tendo também no fundo um plano-seqüência que se reveza com imagens da água. Trata-se de uma verdadeira profusão de imagens e palavras, de planos sobrepostos e de camadas complexas de significantes que, na voz de Próspero, anunciam a criação mágica da tempestade através do Livro da Água.
Essa será a tônica de A Última Tempestade, a de provocar estranheza ao enlaçar sedutoramente a palavra e a imagem, ao espacializar iconivamente o texto em seu sentido escrito ou oral e ao transcriá-lo com o poder das metáforas. Como vemos, Greenaway promove intencionalmente um revés na esfera da linguagem cinematográfica, valorizando com eloquência o sistema verbal numa composição acentuadamente visual de idas e vindas em relação ao original. Essa luta pela palavra com rajadas tecno-eletrônicas é explicada pelo próprio Greenaway da seguinte forma:

" Prospero’s Books é um filme sobre " você é o que você lê" Somos todos produtos da nossa educação, de nossa formação cultural, que é muito percebida pelo texto. O texto é tão desesperadamente importante nesse filme. Todas as imagens surgem do tinteiro de Próspero, como se fosse uma cartola, com o mágico tirando lenços, imagem após imagem."7
A palavra está marcada e constituída no filme com uma potente plasticidade pictoral, consequentemente impregnada de visualidade diagramática que se intercambia e se justapõe aos diferentes códigos e sub-códigos de A Última Tempestade. A palavra é então explorada e combinada desde o seu nível simbólico até a sua dimensão quali-sígnica.
Esse esforço explícito de aquilatar a palavra por meio da construção de semelhanças qualitativas é também um esforço do autor que se revela na estrutura significante de conjugar, de maneira gozosa o verbal e o não-verbal. Sabemos que, sem cair no maniqueísmo das teorias reducionistas e também levando-se em conta as diferencias entre cada forma específica de representar, o filme faz esse casamento perfeito, e não oficial, entre o verbal e o não–verbal, demostrando que esses sistemas de representação não são estanques como talvez se possa imaginar.8 Particularmente, essa recuperação da palavra ou mesmo da interação entre a palavra e a imagem, tem se mostrado com alguma freqüência propostas criativas produzidas em sistemas audiovisuais cada vez mais híbridos como o vídeo, o suporte halográfico e a computação gráfica, onde se pode experienciar exaustivamente essa busca da imagem na palavra e vice- versa. A poesia também sempre foi um terreno muito fértil para esse tipo de exercício. Basta observamos como exemplo a poesia de Georg Trakl9 que, com toda a sua carga metafórica e com a exploração de descontinuidade do significante imprime ao poema sonoridade de toda uma carga virtual de imagem. Mesmo sem precisar ir muito longe, o movimento da poesia concreta no Brasil, tendo como principais articuladores Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari, materializou de fato essa visualidade e sonoridade no poema seja pela apresentação/disposição textual do significante ou pela capacidade de evocar ou sugerir visualmente significados.10 Como podemos observar, trata-se de diferentes concepções que renovam o uso da palavra, construindo um texto visual com soluções gráficas, espelhamentos, ritmo, movimento e sonoridade. Foi percebendo esse potencial da poesia que muitos autores, a exemplo de Eisenstein e Tinianov, procuraram associar cinema e poesia nesta perspectiva de poder trabalhar o ritmo e a métrica, ou valorizar a palavra, imprimindo-lhe uma sonoro- visualidade necessária para um cinema de natureza poética. A solução encontrado por Greenaway foi justamente essa, a de buscar na poesia, de escavar a palavra, de expô-la ao espectador através de suas diferentes formas escritas (estáticas ou movimento, manuscritas ou em corpo eletrônico, grandes ou pequenas e com diversificação de fontes) ou ainda nas diferentes formas orais, materializada com auxílio de sofisticada tecnologia de pós-produção de áudio.
A palavra em A Última Tempestade tem a força das imagens e interagem com as imagens e o som. Na medida em que o protagonista escreve, as palavras-imagens se transformam em imagens. As imagens propriamente ditas, por sua vez, carregam também uma força textual, visto que são releituras e também se convertem em texto- imagem. Ambas, palavras e imagens, estão contaminadas pelo olhar da impureza, ou melhor palavra e imagem estão lambuzadas uma pela outra, ainda que possuam a sua autonomia nesta experiência desarticuladora e misógina.
Uma das preocupações centrais do filme é explorar as variantes da palavra, desde o seu caráter mais puramente simbólico, onde possui a força da lei e de precisão, até caminhar dialogicamente ao seu extremo, materializar a palavra numa condição de ícone capaz de tocar os sentidos e irradiar o conjunto da obra. Não é à toa que Greenaway pontuou relacionalmente a obra shakespeariana com diferentes livros que estabelecem marcações com a narrativa textual e, em algumas vezes, esses livros encontram-se relacionados com a entrada de personagens em cena.
Na passagem do deslocamento em traveling de Próspero com traje vermelho e Miranda com roupas brancas para ver o espírito anfíbio Caliban associado ao elemento terra, assistimos a uma cena entrecortada com a agressividade de tomadas, onde livros são rasgados por faca, manchados por urina e massa vermelha. A presença de Caliban (Michael Clark) é anunciada pelo Livro da Terra, cujas páginas, segundo a descrição de Próspero, " são impregnadas de minerais ácidos, seivas, bálsamos e afrodisíacos da terra".11 As imagens das páginas desse livro são compostas por textos e ilustrações de terra, rochas, sementes, pedras, animais , desenhos e pinturas, e se transmutam rapidamente em novas páginas. Ainda nesta mesma seqüência em que Próspero escreve o que está sento materializado para o espectador, vemos uma mão que escreve, a fala superposta eletronicamente de Caliban e que se funde a imagem do mesmo jogando livros em cima de um rochedo, com seus movimentos corporais sincopados. Greenaway faz assim uma ação combinatória complexa entre palavra e imagem para produzir múltiplas significações, demarcando o estilo de seu processo criativo. Analogamente, trata-se da Babel vislumbrada por Jorge Luis Borges, agora materializada pelo pincel tecno–cinematográfico. Dito isto, os livros no filme são compostos não só por texto, mas por texturas multicoloridas em movimento, como no Livro das Cores, ou ainda por animações de inscrições rupestres, desenhos de estudos de Da Vinci e Muybridge, fotografias, maquetes arquitetônicas em papel, esquemas, diagramas, fórmulas matemáticas, ilustrações de geometria e anatomia, etc.
Neste sentido, o diretor transporta ao cinema uma concepção multimídia com o auxilio da eletrônica analógica e digital. A palavra nesses diferentes livros está esteticamente marcada pela ação da visualidade, sonoridade, cor e movimento. Esses livros hipotéticos criados pelo cineasta formam uma estrutura paralela na narrativa cinematográfica que, conforme já enfatizamos, dialoga com o texto base A Tempestade. Essa estrutura conversacional nos mostra as transmutações do personagem Próspero e também introduz novas ações e temas. É o caso da cena do primeiro encontro de Miranda com Ferdinando. Esse encontro é permeado pelo Livro do Amor12, aberto pelo gênio infantil alado, e que possui apenas imagens mitológicas. A seqüência desse encontro, que se apresenta como uma tela de pintura movente, transcorre em uma paisagem que mescla primavera e outono, num ambiente cênico onde se ressaltam colunas de arcos arquitetônicos, composta meticulosamente além dos dois jovens, por Próspero, Ariel adolescente que está sob uma bola, corpos nus de homens e mulheres e por cupidos que fingem observar o acontecimento. O quadro em plano geral é recortado por sucessivas tomadas em plano aproximado que enfatizam os contrastes de cores fortes e suaves da roupa dos personagens, e do cenário bucólico acentuado pela profundidade de campo. Essa tela do amor, fatiado por diferentes planos e ângulos, é pontuada ao final pelo som do canto de um pavão, dando lugar ao próximo livro: Um Bestiário de Animais- Presente, Passado e Futuro.
O filme, por sua proposição labiríntica e formação estilhaçada, pode ser comparado a uma espécie de enciclopédia hipertextual, onde o espectador, diante de estruturas flexíveis, escolhe o seu percurso de navegação. Um percurso evidentemente virtual pela própria natureza do suporte em que o filme pode ser habitualmente visualizado: vídeo ou cinema. Esse sistema de representação são por natureza lineares. Somente as construções estéticas estruturadas sob a dominância do ícone nos sistemas de representação linear que conseguem auferir essa liberdade de tráfego na obra por parte do intérprete, justamente pela natureza complexa do signo estético, que produz virtualidade. Assim, nos sistemas de representação lineares nos quais a estruturação da mensagem é feita pela sucessão contínua de signos, a interatividade torna-se abstratamente concreta, sobretudo nas produções de natureza estética que simula a complexidade não- linear do pensamento. Nos sistemas não-lineares, a interatividade ou mesmo a navegação já são possíveis ao nível simbólico. O poder da virtualidade se efetiva muito mais nas produções de cunho estético. Mas essa discussão apresentada acima tem como propósito enfatizar toda a carga da virtualidade e, consequentemente, essa possibilidade de navegação em A Última Tempestade através de um cursor imaginário. Greenaway transplanta com o necessário rigor criativo procedimentos da era paradoxal, onde presenciamos um alto nível de resolução técnica da imagem, estocagem ilimitada da imagem, gerando um processo de metamorfose, ou mesmo de absorção ou iliminação do real. A Última Tempestade é uma espécie de olhar inquieto do cinema para os processos não-lineares, para uma outra natureza de imagem sempre aberta a intervenção. A busca rigorosa no potencial das tecnologias e eletrônicas resulta em um cinema muito mais denso esteticamente e muito mais maleável enquanto estruturação sígnica. Nesse caso, o tratamento criativo da palavra no cinema tornou-se mais fluido com o suporte videográfico e as tecnologias digitalizadas. Também é importante enfatizar que, ao abraçar sistemas sígnicos predecessores ao cinema, como a literatura, a pintura, o teatro, a música, a dança, como também os sucessores pós-fotográficos como o vídeo, a HDTV e os suportes digitais, Greenaway articula uma combinatória híbrida que inova a linguagem cinematográfica. Esse deslocamento da linguagem ocorre porque o cinema assimila procedimentos técnicos que não são inerentes ao código cinematográfico, a exemplo de colorizações, incrustações de cenários, complexos movimento de câmara, eliminações de objetos ou situações indesejadas, simultaneidades de planos num único plano, correções de luz, acentuação de detalhes e assim sucessivamente. A absorção pelo cinema de todo esse potencial da eletrônica de forma não subserviente resulta sem dúvida, em um deslocamento da linguagem cinematográfica. O cinema, tomando como parâmetro A Última Tempestade, muda a sua natureza porque, enquanto suporte integrante de uma era dialética, não permanece alheio à era paradoxal, das tecnologias eletrônicas- promovendo também um salto para o passado, a era da lógica formal. A renovação da linguagem se configura, dessa maneira, pela entrada em cena das novas tecnologias, que abrem um novo campo para o cinema voltado para a investigação estética. Kátia Maciel, referindo-se ao uso das novas tecnologias, ressalta uma tendência no cinema que
"potencializa a imagem cinematográfica através da reinvenção da própria linguagem do cinema. É o exemplo de Peter Greenaway em A Última Tempestade, utilizando Hariet e o HDTV para recriar a montagem do quatro no quadro, utilizando as novas possibilidades tecnológicas para inserir o extra-campo no campo, seja no som ou na imagem.[...] Este cinema não é seduzido pela tecnologia, mas ao contrário, a seduz. Ele se apropria das imagens virtuais para criar uma versão cinematográfica do virtual. Este cinema leva as últimas conseqüências o novo tecnológico, não como um clichê a mais, mas como possibilidade estética de um novo cinema, de uma nova imagem."13
Como um objeto estético contemporâneo, A Última Tempestade, é um modelo dessa tendência contemporâneo que não se deixa seduzir pelo jogo fácil das novas tecnologias. O filme neste caso, é o lugar do encontro de suportes e linguagens, o espaço para migrações e convergências14. Nele coexistem distintas modalidades artísticas, sendo assim um espaço de conjunções, interseções e passagens de imagens de natureza bastante diversa. Neste contexto, torna-se cabível a afirmação de que a tecnologia dissolve territorializações e promove o imbricamento de diferentes corpos, mobilizando inclusive diferentes saberes ao incorporar a tecnologia eletrônica o filme se apresenta como uma obra hipertextual, em cuja estrutura labiríntica o espectador pode realizar um trajeto descontínuo através de suas cadeias flexíveis. Essa espécie de enciclopédia eletrônica de concepção multimídia é formada por estruturas sígnicas abertas, que se interconetam com a finalidade de evocar qualidades sensoriais e, consequentemente, trabalha com a idéia de geometrização do pensamento.

" O cineasta inglês Peter Greenaway é um dos que mais se aproxima da criação, a partir do cinema, de uma estética digital. Greenaway vem montando a cada novo filme uma verdadeira enciclopédia audiovisual da arte contemporânea, no espírito das exuberantes enciclopédias renascentistas. [...] Os livros de Próspero transformam-se assim em programas de uma enciclopédia digital, onde a qualquer momento janelas com som e imagens, fotografias e animação são ativadas, num audiovisual eletrônico da alquimia, geometria, anatomia e metafísica... renascentista: livros que se movem, pulsam e sangram."15
Assim sendo, Greenaway monta uma enciclopédia contemporânea, valorizando a própria complexidade do conhecimento e a sua possibilidade de provocar mudanças de mentalidade. A Última Tempestade resgata sabiamente as tecnologias avançadas e nos demonstra, através de significantes oníricos, essa conjugação entre palavras, imagem e som. Neste filme, palavra com sonoridade que escorrem sob a tela, livros que se multiplicam em imagens sobre imagens num mesmo plano e a profusão de imagens convidam o espectador para o uso da imaginação.
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Notas
7 Entrevista concedida por Peter Greenaway à Marlene Rodgers. Próspero’s Books-Word and Spectacle.
In: Film Quartely vol. 45 n.2. p.15. [ Trad. João Foltran].
8 Lúcia Santaella em Palavra, Imagem &Enigmas inicia o seu texto com duas pertinentes inquietações: " O que há de Imagem na palavra" e " O que há de palavra na imagem". Por fim ressalta: Palavra e imagem não são mais do que os iluministas sonharam que fossem: meios transparentes através dos quais a realidade se apresenta a compreensão. Elas se tornaram tão enigmáticas, problemas para serem decifrados, quanto é enigmática a realidade que, sempre com certa distorção e ambigüidade, elas intentam representar." In: Revista da USP n.16. pp.36-37.
9 Sobre a poesia de Georg Trakl conferir brilhante estudo de Modesto Carone, Metáfora e Montagem. São Paulo, Perspectiva, 1974. O autor, amparado na complexa noção de metáfora e no conceito de montagem de Eisenstein, analisa poemas de Trakl identificando visualidade, sinestesias, a cor e o próprio processo de montagem do poema.
10 Sobre a visualidade na poesia consultar Philadelpho Menezes. Poética e visualidade. Uma trajetória da Poesia Visual Brasileira Contemporânea..Campinas, Unicamp, 1991; ou ainda POEMOGRAFIAS: Perspectivas da Poesia Visual Portuguesa (org.)Fernando Aguiar e Silvestre Pestana. Lisboa, Ulmeiro, 1985, uma coletânea de textos sobre o assunto e poemas visuais.
11 Fala de Próspero no filme reportando-se ao livro da terra
12 A descrição de Próspero para o Livro do Amor é a seguinte: " Fitas trançadas marcando suas páginas. Há uma imagem de um homem e uma mulher nus. O resto é conjectura."
13 Kátia Maciel. A Última Imagem. In: Imagem Máquina. pp. 256-257.
14 Nelson Brssac ao descorrer acerca da integração das artes, afirma que "este lugar de convergência é um espaço expandido" onde " o mundo das imagens e dos objetos deixam de se opor." Passagens da Imagem: Pintura, Fotografia, Cinema, Arquitetura. In: Imagem-Máquina. pp.240 e 242.

O Cinema Enciclopédico de Peter Greenaway

lançamento da Unimarco Editora na Bienal do Livro de São Paulo 2004

Livro reúne ensaios multidisciplinares para tratar a obra do cineasta britânico, diretor de O livro de Cabeceira; O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante; e Afogando em Números

Um livro de ensaios sobre a obra enciclopédica do cineasta, artista plástico e escritor Peter Greenaway é o destaque que a Unimarco Editora reservou para lançar durante a 18ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Organizado por Maria Esther Maciel, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, O cinema enciclopédico de Peter Greenaway traz ensaios elaborados por colaboradores de áreas distintas, que mantêm uma perspectiva diferenciada — aberta, conjetural, multíplice e transdisciplinar — para tratar os filmes, óperas, trabalhos de artes plásticas, textos literários e instalações do diretor britânico.
“Designar o cinema de Peter Greenaway como enciclopédico é reconhecê-lo como essa rede de saberes, linguagens, suportes, metáforas, alegorias, intertextos, organizada a partir de determinados princípios de ordem para tratar de um mundo desordenado e muitas vezes absurdo”, explica Maria Esther Maciel em seu texto de apresentação. Ao longo de mais de trinta anos de trajetória artístico-intelectual, Greenaway nunca deixou de buscar em outras artes e nas novas tecnologias audiovisuais formas alternativas para a linguagem de seus filmes. “Polêmico e provocador, seus temas desafiam – por vias irônicas e insólitas – o moralismo e as ‘verdades’ instituídas de todos os tempos”, diz a organizadora. Além de cineasta e artista plástico, Greenaway é escritor de romances, contos, ensaios, poemas e roteiros, tendo publicado vários livros, em muitos dos quais entrelaça ficção, ensaio e roteiro cinematográfico. Atualmente vivendo em Amsterdã, dedica-se à realização de seu mais ambicioso projeto: The Tulse Luper suitcases, que inclui três longas-metragens, vários livros, CD-ROMs, DVDs, sites na Internet e uma série para a televisão. O tema do projeto é a reconstrução da vida de Tulse Luper, um prisioneiro profissional, a partir de 92 malas encontradas pelo mundo no período de 1928 a 1989. (Veja mais - http://www.tulselupernetwork.com/basis.html).
Os ensaios
Além de incluir um ensaio de Greenaway (Cinema: 105 anos de texto ilustrado), publicado em 2001 na revista americana Zoetrope All-Stories Magazine, e a entrevista Cinema e novas tecnologias – conversa com Peter Greenaway por Maria Dora Mourão, o livro traz os seguintes textos e seus autores:
Greenaway, a estilização do caos (Ivana Bentes); Essas "coisas que fazem o coração bater mais forte" (Evando Nascimento); Cinema e pintura: ubiqüidades e artifícios (Magali Arriola); Os infernos de Peter Greenaway (Maria Esther Maciel ); C é de corpo, G de Greenaway (Cristiano Florentino); O zoológico barroco de Peter Greenaway (Susana Dobal); O barroco tecnológico: A última tempestade (Prospero’s books) e outras obras/óperas (Jair Tadeu da Fonseca); Greenaway e as influências das novas tecnologias na linguagem cinematográfica (Maria Dora Mourão ); Eisenstein como livro de cabeceira (Yvana Fechine); As cenas fulgor em O livro de cabeceira (Lúcia Castello Branco ); Filme de arte – um breviário para Peter Greenaway (Elisa Arreguy Maia); O cozinheiro é Peter Greenaway?! (Wilton Garcia ).

Sobre Peter Greenaway
“Nascido no País de Gales, no dia 5 de abril de 1942, Greenaway passou a maior parte de sua vida em Londres, para onde se mudou ainda criança. Formou-se em artes plásticas pela Walthamstow School of Art e, após trabalhar no British Film Institute, foi contratado, em 1965, pelo Central Office of Information, onde passou a realizar trabalho de montagem e edição de filmes documentários e de propaganda para o governo inglês. Seus primeiros curtas-metragens, todos de caráter experimental, foram, em sua maioria, documentários ficcionais, nos quais parodiou a lógica burocrática dos documentários oficiais do governo e usou de forma lúdica e irônica os sistemas alfanuméricos de classificação. Dentre eles, destacam-se H is for house, em que leva aos deslimites o ato de catalogar palavras começadas com H; Windows, em que faz uma estatística nonsense de casos de morte por defenestração; e Dear phone, um inventário inusitado de histórias relacionadas a telefones; todos dos anos setenta. No final dessa mesma década, realiza ainda dois médias-metragens, A walk through H, sobre a viagem de um ornitologista após a morte, guiada por mapas absurdos, e Vertical features remake, três versões de um documentário apócrifo feito por um cineasta, escritor e falsário de nome Tulse Luper.
Em 1980, realizou seu primeiro longa-metragem, The falls, um inventário de 92 biografias fictícias de supostas vítimas de uma grande e misteriosa catástrofe. Seu primeiro filme de repercussão internacional foi O contrato do desenhista, de 1982, no qual compõe um retrato mordaz da aristocracia inglesa do final do século XVII. A partir daí realizou filmes cada vez mais ousados e sofisticados, como ZOO – um z e dois zeros (1986), um ensaio ficcional sobre a morte, em que esquadrinha através de rigorosa simetria as leis de decomposição que presidem a vida; A barriga do arquiteto (1987), em que trata do fracasso de um arquiteto americano que vai a Roma organizar uma exposição sobre os projetos arquitetônicos do visionário francês Etienne-Louis Boulée; Afogando em números (1988), uma comédia de humor negro em que explora as possibilidades e impossibilidades dos jogos e dos números; O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante (1989), alegoria "gangsteriana" da sociedade de consumo, em que alia teatro, ópera, arte barroca holandesa, culinária e canibalismo; Os livros de Próspero (traduzido no Brasil como A última tempestade, 1991), transcriação tecnológico-maneirista de A tempestade de Shakespeare; O bebê de Mâcon (1993), um espetáculo dentro de um espetáculo, que recria, por vias heréticas, um drama moralista do século XVII; O livro de cabeceira (1996), em que trabalha a relação entre corpo/escrita e traz para a tela a materialidade visual, sonora e tátil do texto poético de uma escritora japonesa do século X, Sei Shonagon; e Oito mulheres e meia (1999), onde faz um catálogo de fantasias sexuais masculinas à luz do imaginário felliniano. Realizou ainda vários filmes e documentários para a televisão, como Four american composers (1983), A TV Dante – Cantos 1-8 (1989), M is for man, music and Mozart (1991), em parceria com Tom Phillips) e Darwin (1992), dentre outros.”

Serviço:
Livro: O cinema enciclopédico de Peter Greenaway
Organizadora: Maria Esther Maciel
Editora: Unimarco Editora
Formato: 16 x 23 cm; 215 páginas
Preço: R$ 25,00

Lançamento: 18ª Bienal Internacional do Livro – Travessa Literária - de 15 a 25 de abril
Onde: Centro de Exposição Imigrantes - Rodovia dos Imigrantes, Km 1,5, Água Funda - CEP: 04301-010

Unimarco Editora – Rua Clóvis Bueno de Azevedo, 176, Ipiranga (11) 3491-0500.

Os Livros de Próspero

Os roteiros que o cineasta britânico Peter Greenaway escreve para seus filmes quase sempre incluem textos narrativos ou poéticos que desviam o leitor para um topos que escapa às demarcações do gênero e se abre para o campo da criação literária. Roteiros como, por exemplo, os de seus primeiros curtas ou o do longa-metragem The Falls, de 1980, chegam a ser inteiramente narrativos, configurando-se quase como novelas ou coleções de contos, que longe de apenas traçar textualmente as diretrizes para a realização dos filmes, assumem sua própria autonomia enquanto texto.
O livro que se apresenta com roteiro do filme Prospero´s Books (A última tempestade) é um compósito de diferentes modalidades textuais. Além de um ensaio do cineasta sobre o processo de criação do filme, pequenas narrativas ficcionais construídas a partir de alguns motivos shakespeareanos extraídos da peça A Tempestade, na qual o filme é baseado, vêm compor o conjunto, ao lado de reproduções do próprio texto de Shakespeare e da presença de várias imagens extraídas do repertório canônico da história da arte ocidental
Dentre os textos literários que integram o volume, destaca-se a descrição que o cineasta faz dos 24 livros fantásticos que Próspero, o desterrado Duque de Milão, teria levado para o exílio, ao ser forçado a deixar seu ducado e partir pelo mar com a filha Miranda. Tais livros, de inegável feição borgiana, teriam ajudado o personagem a enfrentar o naufrágio, encontrar e colonizar a ilha onde passa a viver, povoá-la com espíritos e espelhos, educar a filha Miranda e escrever a própria história da qual é personagem.
É a descrição desses livros de Próspero/Greenaway que se segue, em tradução.
Estes são os vinte e quatro livros que Gonzalo apressadamente lançou dentro da nau de Próspero, quando este foi arrastado ao mar para começar seu exílio. Tais livros possibilitaram que Próspero encontrasse seu caminho através dos oceanos, combatesse a perversidade de Sycorax, colonizasse a ilha, libertasse Ariel, educasse e distraísse Miranda, convocasse tempestades e domasse seus inimigos.


Maria Esther Maciel

Metafísica de Peeter Greenaway

Fragmento do roteiro de Prospero's books, publicado originalmente no livro: GREENAWAY, Peter. Prospero's books - a film of Shakespeare's The Tempest. London: Chatto & Windus, 1991, p. 17-25.

1. O Livro da Água
Este é um livro de capa impermeável, que perdeu sua cor pelo demasiado contato com a água. É repleto de desenhos investigativos e textos exploratórios escritos em diferentes espessuras de papel. Há desenhos de todas as associações aquáticas concebíveis: mares, tempestades, chuvas, neve, nuvens, lagos, cachoeiras, córregos, canais, moinhos d'água, naufrágios, enchentes e lágrimas. À medida que as páginas são viradas, os elementos aquáticos se animam continuamente. Há ondas turbulentas e tempestades oblíquas. Rios e cataratas fluem e borbulham. Planos de maquinaria hidráulica e mapas meteorológicos tremulam com setas, símbolos e diagramas agitados. Os desenhos são todos feitos à mão. Talvez seja essa a coleção perdida de desenhos de Da Vinci, encadernada em livro pelo Rei da França em Amboise e comprada pelos duques milaneses para dar a Próspero como presente de casamento.

2. Um Livro de Espelhos
Encadernado em tecido de ouro e bastante pesado, este livro tem umas oitenta páginas espelhadas e brilhantes: algumas foscas, outras translúcidas, algumas manufaturadas com papéis prateados, outras revestidas de tinta ou cobertas por um filme de mercúrio que pode rolar para fora da página se não for tratado com cautela. Alguns espelhos simplesmente refletem o leitor, alguns refletem o leitor tal como ele era há três minutos, alguns refletem o leitor tal como ele será em um ano, como seria se fosse uma criança, uma mulher, um monstro, uma idéia, um texto ou um anjo. Um espelho mente constantemente; outro espelho vê o mundo de frente para trás; outro, de cima para baixo. Um espelho retém seus reflexos como se fossem momentos congelados infinitamente relembrados. Outro simplesmente reflete um outro espelho através da página. Há dez espelhos cujos propósitos Próspero ainda precisa definir.

3. Um Livro de Mitologias
Este é um livro grande. Em algumas ocasiões, Próspero o descreveu como tendo quatro metros de largura e três metros de altura. É encadernado em um pano amarelo brilhante que, quando polido, reluz como latão. Trata-se de um compêndio, em texto e ilustração, de mitologias com todas suas variantes e versões alternativas; ciclo após ciclo de estórias entrecruzadas, que tratam de deuses e homens de todo o mundo conhecido - do Norte gelado aos desertos da África -, com leituras explicativas e interpretações simbólicas. De reconhecida autoridade, suas informações são as mais ricas que há no Leste Mediterrâneo, na Grécia e na Itália, em Israel, em Atenas e Roma, Belém e Jerusalém, onde são suplementadas com genealogias naturais e não-naturais. Para o olhar moderno, o livro é uma combinação das Metamorfoses de Ovídio, O ramo de ouro de Frazer e O livro dos mártires de Foxe. Cada estória ou anedota tem uma ilustração. Usando esse livro como um glossário, Próspero pode reunir, se assim desejar, todos os deuses e homens que alcançaram fama ou infâmia através da água ou através do fogo, através do engano, em associação com cavalos ou árvores ou porcos ou cisnes ou espelhos, orgulho, inveja ou gafanhotos.

4. Uma Cartilha das Pequenas Estrelas
Este é um guia de navegação pequeno, escuro e com capa de couro. É um livro repleto de mapas dos céus da noite, os quais, ao se desdobrarem, caem para fora da página, desmentindo o tamanho modesto do livro. Por retratar a imagem do céu refletida nos mares do mundo quando estes repousam, está cheio de manchas que indicam onde as massas de terra do globo interromperam o espelho oceânico. Isso, para Próspero, foi de grande utilidade, pois dirigindo sua nau avariada para uma dessas pequenas falhas no mar de estrelas, ele encontrou sua ilha. Quando abertas, as páginas da cartilha cintilam com planetas viajantes, meteoros lampejantes e cometas giratórios. Os céus negros pulsam com números vermelhos. Novas constelações se enfeixam repetidamente através de ágeis linhas pontilhadas.

5. Um Atlas Pertencente a Orfeu
Revestido de uma capa de lata verde-laqueada, com superfície gasta e queimada, este atlas é dividido em duas seções. A primeira é repleta de grandes mapas de viagem e manuais de música do mundo clássico. A segunda, de mapas do inferno. O livro foi usado quando Orfeu viajou ao mundo subterrâneo em busca de Eurídice. Daí que os mapas se encontrem chamuscados e tostados pelo fogo do inferno e marcados pelas mordidas de Cérbero. Quando o atlas é aberto, os mapas borbulham em piche. Avalanches de cascalhos frouxos e de areia fundida caem de suas páginas e crestam o chão da biblioteca.

6. Um Livro Duro de Geometria
É um livro volumoso, de cor marrom, encapado em couro e gravado com números dourados. Quando aberto, complexos diagramas geométricos em três dimensões saltam das páginas, como em um livro pop-up. As páginas piscam com figuras e números logarítmicos. Os ângulos são medidos por finíssimos pêndulos de metal que balançam livremente, ativados por ímãs ocultos no papel espesso.

7. O Livro das Cores
É um livro grande, encadernado em seda carmesim. É mais largo que alto e, quando aberto, as páginas duplas se estendem, formando um quadrado. Trezentas páginas cobrem o espectro de cores com matizadas sombras que se movem do negro de volta ao negro. Quando aberto em sua dupla extensão, a cor evoca tão fortemente um lugar, um objeto, uma posição ou uma situação, que a sensação sensorial correspondente é experimentada de forma direta. Assim, uma reluzente laranja amarela é a entrada para um vulcão e um verde-azul escuro é a lembrança de um mar profundo onde peixes e enguias nadam e espirram água na face do leitor.

8. A Anatomia do Nascimento, de Versalius
Versalius produziu o primeiro livro autorizado de anatomia, que é surpreendente em seus detalhes e macabro em sua singularidade. Este Anatomia do Nascimento - um segundo volume, hoje desaparecido - é ainda mais perturbador e herético. Concentra-se nos mistérios do nascimento. É cheio de desenhos descritivos dos trabalhos do corpo humano, os quais se movimentam, pulsam e sangram quando as páginas se abrem. É um livro proibido, que questiona os processos desnecessários de envelhecimento, deplora os desgastes associados à procriação, condena as dores e os desconfortos do parto, além de questionar, em termos gerais, a eficiência de Deus.

9. Um Inventário Alfabético dos Mortos
É um volume funéreo, longo e delgado, encadernado em lâminas de prata. Contém todos os nomes dos mortos que viveram na terra. O primeiro nome é de Adão e o último de Susana, mulher de Próspero. Os nomes são escritos em diversas tintas e caligrafias, estando dispostos em longas colunas que ora refletem o alfabeto, ora a cronologia histórica. No entanto, as taxonomias utilizadas são, freqüentemente, de decifração tão complicada, que você poderá pesquisar anos e anos à procura de um nome que, com certeza, estará lá. As páginas do livro são muito antigas e trazem, em marcas d´água, uma série de desenhos de tumbas e columbários, lápides elaboradas, sepulturas, sarcófagos e outras loucuras arquiteturais para os mortos, sugerindo que o livro servia a outros propósitos, mesmo antes da morte de Adão.

10. O Livro dos Relatos de Viajantes
Este é um livro que está muito danificado, como se usado em demasia por crianças que o estimaram. A capa de couro carmesim, arranhada e corroída, que um dia fora incrustada com um desenho figurativo de ouro, está agora tão surrada que suas configurações tornaram-se ambíguas, provocando muita especulação. O livro contém aqueles prodígios inacreditáveis que os viajantes contam. "Homens cujas cabeças saem dos peitos", "mulheres barbadas, chuvas de sapos, cidades de gelo roxo, camelos que cantam, gêmeos siameses", "alpinistas gotejantes de orvalho, como touros". É cheio de ilustrações e tem pouco texto.

11. O Livro da Terra
Um livro volumoso coberto por uma membrana de cor cáqui. Suas páginas são impregnadas de minerais, ácidos, alcalinos, substâncias, gomas, venenos, bálsamos e afrodisíacos da terra. Risque uma grossa página escarlate com a unha de seu polegar para incitar fogo. Passe a língua no cinza de uma outra página para trazer a morte por envenenamento. Ponha a página seguinte de molho na água para curar o antraz. Mergulhe uma outra em leite para fazer sabão. Esfregue duas páginas ilustradas uma na outra para fazer ácido. Encoste sua cabeça em outra página para mudar a cor de seu cabelo. Com este livro, Próspero saboreou a geologia da ilha. Com sua ajuda, dela extraiu sal e carvão, água e mercúrio, e também ouro, não para sua bolsa, mas para sua artrite.

12. Um Livro de Arquitetura e Outras Músicas
Quando as páginas são abertas neste livro, planos e diagramas saltam completamente formados. Há modelos definitivos de prédios constantemente escurecidos por uma nuvem de sombras móveis. Praças de mercado se enchem e se esvaziam de multidões ruidosas, luzes piscam na paisagem noturna da cidade, ouve-se música nos salões e nas torres. Com este livro, Próspero reconstruiu a ilha, convertendo-a em um palácio cheio de bibliotecas que recapitulam todas as idéias arquitetônicas da Renascença.

13. As Noventa e Duas Concepções do Minotauro
O livro reflete sobre a experiência do Minotauro, a mais célebre estirpe da bestialidade. Ele traz uma impecável mitologia clássica para explicar procedências e "pedigrees" que incluem Leda, Europa, Dédadus, Teseu e Ariadne. Caliban, que assim como os centauros, as sereias, as harpias, a esfinge, os vampiros e os lobisomens, é um filho da bestialidade, teria grande interesse nesse livro. Zombando d'As Metamorfoses de Ovídio, ele conta a estória de noventa e dois híbridos. Na verdade, deveriam ter sido contadas cem, mas o puritano Teseu, que já tinha ouvido o bastante, aniquilou o Minotauro antes que este tivesse terminado. Quando aberto, o livro exala um vapor amarelo e cobre os dedos do leitor com um óleo negro.

14. O Livro das Línguas
Este é um livro grande e alentado, com uma capa verde azulada que se turva como um arco-íris sob a luz. Mais uma caixa que um livro, abre-se de maneira não-ortodoxa, por ter uma porta na capa. Dentro, encontra-se uma coleção de oito livros menores, dispostos como garrafas em uma maleta médica. Por trás desses oito livros há outros oito, e assim por diante. Abrir os livros menores é liberar muitas línguas. Palavras e sentenças, parágrafos e capítulos se juntam como girinos de um lago em abril ou pássaros nos céus noturnos de novembro.

15. Plantas Plenas
Parecido com um tronco de madeira antiga e curada, este é um herbário que põe fim a todos os herbários, tratando das mais veneráveis plantas que governam a vida e a morte. É um tijolo de livro, com uma capa de madeira envernizada que já foi, e provavelmente ainda é, habitada por minúsculos insetos subterrâneos. As páginas são recheadas de plantas e flores prensadas, corais e algas marinhas, sendo que em torno do livro pairam borboletas exóticas, libélulas, mariposas esvoaçantes, besouros reluzentes e uma nuvem de pólen dourado. É, simultaneamente, um favo de mel, uma colméia, um jardim e uma arca de insetos. É uma enciclopédia de pólen, perfumes e feromônio.

16. Um Livro do Amor
Este é um volume pequeno, fino e aromático, encadernado em ouro e vermelho, com laços de fita escarlate para marcar as páginas. No livro vê-se a imagem de um homem e uma mulher nus, bem como a imagem de um par de mãos entrelaçadas. Essas coisas foram, certa vez, vislumbradas brevemente em um espelho, e esse espelho estava em um outro livro. O resto é conjetura.

17. Um Bestiário de Animais do Passado, do Presente e do Futuro
É um livro grande, um dicionário de animais reais, imaginários e apócrifos. Com esse livro, Próspero é capaz de reconhecer onças e sagüis, morcegos-das-frutas, manticoras e dromecélios, o cameleopardo, a quimera e o catoblepas.

18. O Livro das Utopias
Este é um livro das sociedades ideais. Encadernado em capa de couro dourado e contracapa de ardósia negra, contém quinhentas páginas, seiscentos e sessenta e seis verbetes indexados e um prefácio de Sir Thomas Moore. O primeiro verbete é uma descrição convencional do Céu, e o último, uma descrição do Inferno. Haverá sempre alguém na Terra cuja utopia ideal será o Inferno. Nas páginas restantes do livro, toda comunidade política e social conhecida e imaginada é descrita e avaliada, e vinte e cinco páginas são dedicadas a tabelas nas quais as características de todas as sociedades podem ser discriminadas, permitindo ao leitor selecionar e combinar aquelas que formem sua utopia ideal.

19. O Livro da Cosmografia Universal
Repleto de diagramas impressos, de grande complexidade, este livro é uma tentativa de colocar todos os fenômenos universais em um mesmo sistema. Os diagramas são gravados nas páginas: figuras geométricas ordenadas, anéis concêntricos que rodam e contra-rodam, tabelas e listas organizadas em espirais, catálogos dispostos em um corpo humano simplificado que, ao se mover, coloca as listas em nova ordem, movimentando os diagramas do sistema solar. O livro oferece uma mistura do metafórico com o científico e é dominado por um grande diagrama que mostra a União do Homem e da Mulher - Adão e Eva - em um universo bem estruturado, no qual todas as coisas têm seu lugar demarcado e a obrigação de serem profícuas.

20. Amor das Ruínas
Um manual de antiquário, um inventário do mundo antigo para os humanistas da Renascença interessados em antigüidades. É repleto de mapas e planos dos lugares arqueológicos do mundo, como templos, cidades e portos, cemitérios e estradas antigas, contendo também as medidas de cem mil estátuas de Hermes, Vênus e Hércules, descrições de cada obelisco e pedestal do Mediterrâneo conhecido, planos das ruas de Tebas, Óstia e Atlântida, um diretório dos pertences de Sejanus, as lousas de Heráclito e as assinaturas de Pitágoras. É um volume essencial para o historiador melancólico que sabe que nada perdura. Suas proporções são como as de um bloco de pedra, quarenta por trinta e por vinte centímetros. A cor é de mármore azul estriado. Arenoso ao toque, tem páginas rijas e crespas, impressas em fontes clássicas que não possuem o W nem o J.

21. As Autobiografias de Pasífae e Semíramis
Uma pornografia. É um volume enegrecido e manuseado, cujas ilustrações são levemente ambíguas em relação ao conteúdo. O livro é encadernado em couro curtido de cor negra e tem capas de chumbo danificadas. As páginas são cinza-azuladas e salpicadas de um pó verde lodoso, fios de cabelo crespo, manchas de sangue e outras substâncias. Uma ligeira nesga de vapor ou fumaça levanta-se das páginas quando o livro é aberto, sendo que este se mantém aquecido - como se contivesse o exíguo calor que aparentemente envolve o gesso que seca ou as pedras lisas depois que o sol se põe. As páginas deixam manchas ácidas nos dedos de quem as manuseia e é aconselhável usar luvas para ler o volume.

22. Um Livro do Movimento
Este é um livro que, em um nível mais elementar, descreve como os pássaros voam, as ondas encrespam, as nuvens se formam e as maçãs caem das árvores. Descreve ainda como o olho muda de forma quando olha a longa distância, como os pêlos crescem em uma barba, como o riso transfigura um rosto e por que o coração bate e os pulmões inflam involuntariamente. Em um nível mais complexo, ele descreve como as idéias perseguem umas as outras na memória e para onde vai o pensamento depois que o pensamos. O livro é coberto por um resistente couro de cor azul e, por estar sempre se abrindo subitamente por sua própria vontade, encontra-se envolvido por duas tiras de couro, atadas com força na espinha dorsal. À noite, o livro se debate contra a estante e tem de ser contido por um peso de metal. Uma de suas seções se intitula "A Dança da Natureza", na qual podem ser encontradas todas as possibilidades de dança para o corpo humano, codificadas e explicadas em desenhos animados.

23. O Livro dos Jogos
Este é um livro de tabuleiros de jogos com infinitas possibilidades de uso. O xadrez é um dentre os milhares de jogos do volume, ocupando apenas duas páginas, a 112 e a 113. O livro contém tabuleiros para serem jogados com fichas e dados, cartelas, bandeiras e pirâmides em miniatura, pequenas reproduções de deuses do Olimpo, ventos em vidros coloridos, profetas do Antigo Testamento feitos de osso, bustos romanos, os oceanos do mundo, animais exóticos, peças de coral, cupidos de ouro, moedas de prata e pedaços de fígado. Os tabuleiros de jogos representados no livro abarcam tantas situações quantas experiências houver. Há jogos de morte, de ressurreição, amor, paz, fome, crueldade sexual, astronomia, da cabala, de estratégias, das estrelas, de destruição, do futuro, de fenomenologia, mágica, retribuição, semântica, evolução. Há tabuleiros com triângulos vermelhos e negros, diamantes cinzas e azuis, páginas de texto, diagramas do cérebro, tapetes persas, tabuleiros em forma de constelações, animais, mapas, viagens ao Céu e viagens ao Inferno.

24. Trinta e Seis Peças
É um grosso volume impresso de peças teatrais datadas de 1623. Todas as trinta seis peças estão lá, menos uma: a primeira. Dezenove páginas foram deixadas em branco para a sua inclusão. Ela é chamada "A Tempestade". O fólio é modestamente encadernado em linho verde-escuro, com uma capa de papelão onde se destacam as iniciais do autor, gravadas em ouro: W.S.
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Tradução: Maria Esther Maciel