22.1.06

Num meio-dia de PrimaveraTive um sonho como uma fotografia.Vi Jesus Cristo descer à terra.Veio pela encosta de um monteTornado outra vez menino,A correr e a rolar-se pela ervaE a arrancar flores para as deitar foraE a rir de modo a ouvir-se longe.Tinha fugido do céu.Era nosso demais para fingirDe segunda pessoa da Trindade.No céu tudo era falso, tudo em desacordoCom flores e árvores e pedras.No céu tinha que estar sempre sérioE de vez em quando de se tornar outra vez homemE subir para a cruz, e estar sempre a morrerCom uma coroa toda à roda de espinhosE os pés espetados por um prego com cabeça,E até com um trapo à roda da cinturaComo os pretos nas ilustrações.Nem sequer o deixavam ter pai e mãeComo as outras crianças.O seu pai era duas pessoas -Um velho chamado José, que era carpinteiro,E que não era pai dele;E o outro pai era uma pomba estúpida,A única pomba feia do mundoPorque nem era do mundo nem era pomba.E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.Não era mulher: era uma malaEm que ele tinha vindo do céu.E queriam que ele, que só nascera da mãe,E que nunca tivera pai para amar com respeito,Pregasse a bondade e a justiça!Um dia que Deus estava a dormirE o Espirito Santo andava a voar,Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.Com o primeiro fez com que ninguém soubesse que ele tinha fugido.Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruzE deixou-o pregado na cruz que há no céuE serve de modelo às outras.Depois fugiu para o solE desceu no primeiro raio que apanhou.Hoje vive na minha aldeia comigo.É uma criança bonita de riso e natural.Limpa o nariz ao braço direito,Chapinha nas poças de água,Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.Atira pedras aos burros,Rouba a fruta dos pomaresE foge a chorar e a gritar dos cães.E, porque sabe que elas não gostamE porque toda a gente acha graça,Corre atrás das raparigasQue vão em ranchos pelas estradasCom as bilhas às cabeçasE levanta-lhes as saias.A mim ensinou-me tudo.Ensinou-me a olhar para as coisas.Aponta-me todas as coisas que há nas flores.Mostra-me como as pedras são engraçadasQuando agente as tem na mão E olha devagar para elas.Diz-me muito mal de Deus.Diz que ele é um velho estúpido e doente,Sempre a escarrar para o chãoE a dizer indecências.A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.E o Espirito Santo coça-se com o bicoE empoleira-se nas cadeiras e suja-as.Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.Diz-me que Deus não percebe nadaDas coisas que criou -"Se é que ele as criou, do que duvido." -"Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,Mas os seres não cantam nada.Se cantassem seriam cantores.Os seres existem e mais nada,E por isso se chamam seres."E depois, cansado de dizer mal de Deus,O Menino Jesus adormece nos meus braçosE eu levo-o ao colo para casa.... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.Ele é humano que é natural.Ele é o divino que sorri e que brinca.E por isso é que eu sei com toda a certezaQue ele é o Menino Jesus verdadeiro.E a criança tão humana que é divinaÉ a minha quotidiana vida de poeta,E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.E que o meu mínimo olharMe enche de sensação,E o mais pequeno som, seja do que for,Parece falar comigo.A Criança Nova que habita onde vivoDá-me uma mão a mimE outra a tudo que existeE assim vamos os três pelo caminho que houver,Saltando e cantando e rindoE gozando o nosso segredo comumQue é saber por toda a parteQue não há mistério no mundoE que tudo vale a pena.A Criança Eterna acompanha-me sempre.A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.O meu ouvido atento alegremente a todos os sonsSão as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.Damo-nos tão bem um com o outroNa companhia de tudoQue nunca pensamos um no outro,Mas vivemos juntos e doisCom um acordo íntimoComo a mão direita e a esquerda.Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhasNo degrau da porta de casa,Graves como convém a um deus e a um poeta,E como se cada pedraFosse todo o universoE fosse por isso um grande perigo para elaDeixá-la cair no chão.Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homensE ele sorri porque tudo é incrível.Ri dos reis e dos que não são reis,E tem pena de ouvir falar das guerras,E dos comércios, e dos naviosQue ficam fumo no ar dos altos mares.Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdadeQue uma flor tem ao florescerE que anda com a luz do SolA variar os montes e os valesE a fazer doer aos olhos os muros caiados.Depois ele adormece e eu deito-o.Levo-o ao colo para dentro de casaE deito-o, despindo lentamenteE como seguindo um ritual muito limpoE todo materno até ele estar nu.Ele dorme dentro da minha almaE às vezes acorda de noiteE brinca com os meus sonhos.Vira uns de pernas para o ar,Põe uns em cima dos outrosE bate palmas sozinhoSorrindo para o meu sono.... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...Quando eu morrer, filhinho,Seja eu a criança, o mais pequeno.Pega-me tu ao coloE leva-me para dentro da tua casa.Despe o meu ser cansado e humanoE deita-me na tua cama.E conta-me histórias, caso eu acorde,Para eu tornar a adormecer.E dá-me sonhos teus para eu brincarAté que nasça qualquer diaQue tu sabes qual é.... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...Esta é a história do meu Menino Jesus.Por que razão que se percebaNão há-de ser ela mais verdadeiraQue tudo quanto os filósofos pensamE tudo quanto as religiões ensinam ?

Alberto Caeiro

Representação, Imagem e Simulacro

Representação, imagem e simulacro - Um conceito importante para o pensamento e a arte. O conceito de representação, utilizado pela filosofia nos ramos da teoria do conhecimento e da estética, provém da escolástica. Inicialmente, deriva de uma relação que seria estreita entre a semelhança de um objeto e o conhecimento que dele se tenha. Tal é a definição dada por São Tomás de Aquino no século XIII. Guilherme de Ockham, por sua vez, distinguiu três sentidos para a representação: um meio ou veículo pelo qual apreendemos algo, sendo, portanto, o conhecimento ou a idéia uma representação; pode ser a imagem de algo já conhecido e, daí, uma forma de memória; por fim, a representação aparece também como estímulo ou causa de um conhecimento. Para o que aqui nos interessa mais de perto, todo processo, obra ou ação artística requer uma representação, seja por necessidade de se exteriorizar, de se fazer ver seja pela de ser percebido. Ou pelo menos, a grande maioria das manifestações artísticas a pressupõe - como as artes dramáticas, as artes plásticas figurativas e a literatura (é uma necessidade ontológica). Permanece discutível, ainda hoje, se a marca dessa representatividade poderia ser atribuída à música, sobretudo à instrumental ou absoluta, ou ainda à arquitetura. Inicialmente, o ato de representar (ou re-apresentar) consiste na substituição de um fenômeno primário (físico ou mental), tido como verdadeiro ou existente na realidade, por um outro, criado e constituído por meio de signos (palavras, imagens, gestos, traços, cores, efeitos ópticos) e portadores de um significado ao mesmo tempo subjetivo e histórico. Ou seja, entre o ser, a realidade (ou aquilo que se representa) e o representado (obra, objeto criado, imagem) permeia uma certa experiência, um determinado conhecimento, uma intuição, uma técnica mais ou menos elaborada. Como a ela se refere Fernando Gil (Rappresentazione): "Em toda forma de representação, alguma coisa se encontra no lugar de outra. Representar significa ser o outro do outro, que vem, simultaneamente, evocado e cancelado. Manter-se-á este significado como determinação mínima da representação, a qual se configura, de tal modo, como o próprio tecido do pensamento [...]. Na representação, intervém o sistema pensamento-linguagem: é uma percepção interpretada, um sensível e, ao mesmo tempo, uma descrição". Mesmo em nível primário, tudo leva a crer que o cérebro não "veja" o mundo objetivo, exterior ao indivíduo, de maneira direta. Ele já "representaria" os objetos e as coisas por um processo bastante complexo de sensação-percepção, codificação, tradução e reorganização dos dados percebidos. Sendo assim, a representação corresponderia a uma ação cerebral (eletroquímica) e igualmente espiritual, pois que influenciada por estruturas internas, estratégias mentais particulares, vivências passadas, hábitos culturais ou sentimentos e disposições psíquicas. Daí também a possibilidade de ocorrerem disfunções alucinatórias ou paranóicas, como resultado de todos esses fatores na manipulação do material percebido. Influência na representação do real Desde Platão, no entanto, essas relações entre o real e a natureza representativa da arte e do pensamento aparecem como problema. Em primeiro lugar, pelo fato de a representação ser incapaz de apreender o objeto a que se refere, ou ser capaz de fazê-lo apenas em parte, ou deturpá-lo por insuficiência ou excesso. Em segundo, porque esse ato de substituição e de criação introduz um jogo de ausência (o representado) e de presença (a obra constituída pelos signos). No diálogo O sofista, por exemplo, o filósofo distingue, valendo-se da figura do Estrangeiro, a mimese, ou arte da cópia que conserva as proporções do objeto original, daquilo que seria o simulacro. No primeiro caso, as dimensões, as relações ou configurações originais são transpostas com justa medida, o que fornece à representação uma garantia na troca dos lugares. Mas a cópia poderá ser voluntária ou inconscientemente distorcida, iludindo a visão prejudicando o entendimento do real. Nesse caso, a arte deixaria de ser uma mimese para se converter em simulacro ou representação não-caucionada pela realidade. E o Estrangeiro assim se expressa: "Que modo encontrar para dizer ou pensar que o falso (representado) é real, sem que, já ao proferi-lo, nos encontremos enredados na contradição? [...] a audácia de uma tal afirmação é supor o não-ser como ser [...]. Uma coisa é certa: não se poderia atribuir o não-ser a qualquer ser que se considere [...]. Mas até que encontremos alguém capaz dessa proeza, digamos que o sofista, da maneira mais astuciosa, escondeu-se neste refúgio inextrincável". Conseqüentemente, não apenas as "razões" do sofista, mas uma determinada arte se exteriorizaria como simulacros, logros ou embustes, pois que conceberiam o não-ser como ser. Signos e imagens na representação Antes de dar continuidade ao debate anterior, convém nos referirmos às formas dos signos e, especialmente, às das imagens, pelos quais as obras de arte representam e se instituem. Para Charles Sanders Peirce, um signo pode ser entendido como "alguma coisa (o representamen) que está para alguém (o intérprete) em lugar de outra (objeto ou referente), sob algum aspecto ou capacidade" (o interpretante, às vezes tido como o significado, Às vezes como a garantia da validade do signo). Este conceito de signo conserva-se, portanto, estreitamente vinculado à própria representação, que é o ato de selecionar, substituir e criar por meio de signos (objeto-marca). Em conformidade ainda com Peirce, e aqui de modo bastante sintetizado, os signos diferenciam-se, relativamente aos seus objetos, em ícones, índices e símbolos. Os ícones são signos que trazem uma relação de semelhança ou de similaridade com o referente. Podem ter a forma de imagens (semelhanças por aparência visual, como uma escultura ou pintura figurativas, uma fotografia), de diagramas (a similitude não decorrer da aparência, mas de relações internas, como as fornecidas por gráficos) e de metáforas (que fazem um paralelo entre dois significados justapostos). Vale notar que essas representações icônicas tornam-se progressivamente convencionais. Ou seja, a representação de uma imagem é dada pela semelhança de aparência; mas a do diagrama exige que, por meio de relações como as de quantidade, freqüência, distribuição etc., a mente do intérprete produza uma idéia subseqüente; e na metáfora, por fim, chega-se a uma imagem puramente mental que engloba processos perceptivos e cognitivos dependentes agora de um código, ou modelo convencional de comunicação (a língua), regidos por regras (e muito mais formalizado do que os anteriores).
Os índices ou indicadores são signos afetados diretamente pelos referentes, mas neles intervém uma relação física de causa e efeito. Por exemplo, a fumaça, que nos induz à percepção do fogo; a oxidação, que pressupõe a existência de reações químicas com o ar; a pegada, que nos leva a pensar no homem ou no animal que a deixou impressa. Finalmente, tem-se o símbolo, que é o signo dependente de hábitos adquiridos, de uma lei, código ou léxico estabelecidos, como os da língua, ou seja, de combinações relativamente abertas, mas convencionais e culturais. A acepção original dessa palavra, em grego, já exprimia a idéia de uma "celebração de contrato". Abrangia tanto um nome, um vocábulo, como um documento de compra e venda, uma senha ou dístico. Constituía assim uma forma de comunicação estruturalmente artificial, de combinações mais ricas ou diversificadas, pois que baseada na arbitrariedade da relação entre o significante e o significado, tal como Locke e Saussure demonstraram na definição do signo lingüístico. Ainda para Peirce, se um símbolo lingüístico não realiza concretamente aquilo a que se refere, ao ser pronunciado ou escrito, ainda assim é capaz de produzir, mental ou emocionalmente, as associações ou imagens desejadas. Mais do que isso, é importante constatar que um símbolo encerra relações dialéticas como os demais tipos de signos. Na expressão "João ama Maria", por exemplo, o conjunto de símbolos lingüísticos que forma a sentença pode conduzir à formação da imagem mental de um casal (a um ícone) e à de um beijo (um índice de afeição ou de atitude amorosa). Inversamente, um ícone é capaz de gerar expressões simbólicas do tipo lingüístico. Sendo a representação o termo final de um ato substitutivo, ela requer não apenas a forma de um signo, como o conteúdo de uma imagem. Esta, por sua vez, corresponde a um análogo, que tanto pode funcionar como testemunha de coisas ou de relações já percebidas no passado, como também de criatura ou invenção mental de entes novos ou inexistentes (projetados). As imagens, portanto, não têm apenas o sentido restrito de cópia figurativa ou plástica, mas também o significado abrangente de conteúdos sintetizados de informação, de refer6encia e de conhecimento. São reprodutoras e criadoras, em graus e finalidades diversas. Daí também a categorização sugerida por W. T. Mitchell (Iconology: Image, Text, Ideology), segundo a qual seria possível distinguir imagens: a) perceptivas - captadas pelos sentidos, em face do mundo natural, e base física de todas as demais; b) gráficas - figuras, desenhos, esculturas, fotografias; c) verbais - figuras de estilo e de linguagem, como as metáforas, metonímias, sinédoques etc.; d) ópticas - espelhos, projeções cinematográficas, televisivas, virtuais, holográficas; e) mentais - sonhos, recordações, idéias e até mesmo alucinações. Ambigüidade de entendimento Voltando-se agora para o problema da representação, é possível argumentar em dois sentidos opostos, e ao mesmo tempo intercomplementares, dado o caráter ambíguo com que ela se manifesta. Ao se considerar a arte como artifício ou segunda natureza, é inevitável contrapô-la a uma realidade anterior, primária, seja ela material ou espiritual. Conseqüentemente, o ato de representar substitui aquilo que, na linguagem filosófica, é denominado "ser" ou distingue-se dele. O conceito utilizado por Platão para se referir a essa troca é o de eídolon (ídolo), algo que se assemelha, que possui a aparência, que constitui uma imagem. Esta, como já se mencionou, abrange por vezes a mimese, a imitação proporcionada, como também o simulacro (tradução latina da palavra grega), uma forma, digamos titânica e voraz, pois que pretende competir com o ser representado, eliminá-lo e erigir-se em realidade única ou independente. De um lado, e caso se pressuponha ser a arte não apenas uma reprodução do real, mas, sobretudo, uma forma exclusivamente humana de organizar a percepção natural dos sentidos, e de agir intelectivamente, então a distinção entre mimese e simulacro perderá importância. Ou seja, o caráter representativo da arte já lhe permite, de saída, instaurar-se como manifestação autônoma, como um "ser" ontológica e culturalmente independente, tendo ou não a garantia de uma realidade anterior, subjacente, ou então transcendente. Como ela se exterioriza por imagens, tal fato implica uma ambigüidade, uma incerteza, uma significação múltipla ou oscilante, o que também ocorre no ato de sua contemplação ou contato. Ainda que seja um simulacro e não uma mimese ou cópia, a representação artística criaria um mundo superior à existência cotidiana ou, no mínimo, diverso do que é ordinário. A música, por exemplo, seria mais do que a caoticidade dos ruídos; a pintura, mais aguçada e reveladora do que o olhar desatencioso; a fotografia, mais perene que a fração de tempo de um gesto; a literatura, mais imaginativa e esclarecedora do que fatos eventualmente acontecidos ou sentimentos experimentados. Segue-se daí que o ato de representar somente poderá ser realizado se a ação humana modificar um fenômeno natural, seja quando reordena ou interrompe sua manifestação regular (ritmo, cor, movimento etc.), seja no momento em que impõe uma ordem, subjetivamente escolhida, à aparência de vazio ou desordem. Em ambos os casos, haverá sempre um acréscimo de sentido ou uma interferência de significado. E o real poderia ser então entendido como constructo, como imagem constituída simbolicamente, e não um fato que se recupera em sua integridade natural. No final das contas, o que realmente ocorre ou prevalece é a auto-representação humana, compatível com valores e situações históricas, chamemo-la mimese ou simulacro. De outro lado, pode-se argumentar que a representação e seus signos comportariam três tipos de relação entre o real e o imaginário, os quais foram se alterando ao longo do tempo: a) a representação mimética, que alcança o início do Renascimento, refletiria uma realidade profunda, pois suas finalidades seriam as de revelar a existência de uma ordem ainda mais substancial do que a própria existência vivida (porque a ela superior ou transcendente), as vicissitudes e as grandezas humanas diante do poder divino, ou então as de reforçar uma reciprocidade de origem e de estatuto sociais (as sagas ou os objetos simbólicos de uma classe aristocrática). Até então prevaleceria uma regra ou compromisso relativamente configurados, que dariam sentido prévio às imagens e às formas de representação; a mimese tornaria uma obra sensível, no sentido de ser compartilhada com qualquer outro ser humano, capaz de propor um sentido comum, de evocar uma memória coletiva, de exprimir emoções identificáveis;
b) a representação desviante da realidade seria a que mascara, deturpa ou simplifica os fenômenos objetivos, correspondendo ao simulacro platônico ou à ordem da dissimulação. Esta é, inclusive, uma das faces da representação do poder, na opinião de Elias Canetti (Massa e Poder). Um modo de trânsito entre imitação e a completa metamorfose. Algol que se detém a meio caminho, de maneira perigosa, como uma "aproximação amigável com intenção hostil". Ou seja, o interior verdadeiro permanece velado ou escondido sob uma aparência exterior atraente. Simulacro. Por fim, tem-se a representação, signo ou imagem que não mais depende de uma reciprocidade simbólica, que não mantém uma equivalência de significados, que se abstrai gradativamente com o predomínio dos valores burgueses - o simulacro moderno. No entender de Jean Baudrillard, esta primeira manifestação, ainda transitória, apareceria na arte perspectiva do barroco, que ele denominou de contrafação. É que aquela perspectiva pictórica ou arquitetônica já permitiria uma indagação (e uma dúvida) sobre o falso e o verdadeiro, além de introduzir uma idéia do mundo, das relações sociais e do imaginário como teatro, aparato ou espetáculo. Embora incipiente no transcorrer do período renascentista, estaria ali o princípio da arbitrariedade da representação: "O arbitrário do signo começa quando, ao invés de ligar duas pessoas por uma reciprocidade intransponível, ele reenvia, enquanto significante, a um universo desencantado do significado, denominador comum do mundo real, com relação ao qual ninguém mais tem compromisso" (L'Échange symbolique et la mort). Desta fase aos nossos dias, as imagens foram sendo construídas por ausências crescentes, sem nenhum vínculo com as realidades profundas, até se chegar ao momento em que não existiria outra referência a não ser o código de que a representação se utiliza, o que portanto, mascara não um fenômeno objetivo, mas a ausência de qualquer realidade. Esta forma ex nihilo (a partir do nada) ad nihilum (para o nada) constituiria o simulacro típico da era contemporânea, pós-industrial e de imagens virtuais. Sua característica seria a de reivindicar-se como meio e fim, universo enclausurado de sentido, envaginado na forma, desprovido de razões (irracional) e resistente às circunstâncias e aos conflitos mais profundos da existência empírica. Conseqüentemente, o simulacro está presente em toda obra que se instaura por seu próprio fascínio e dispensa a realidade que finge representar. Um real puro, circunscrito à forma, ao manuseio dos códigos artísticos e de arranjos combinatórios. Além disso, a velocidade, a fragmentação, a efemeridade e a saturação de imagens estéticas no cotidiano removeriam da arte sua capacidade de realizar um objetivo básico - o da transcendência. Por esta, a impressão sensível ou emotiva deveria estar unida a um ato de síntese, de unificação abstrata de consciências vividas ou diferentemente experimentadas. Ou seja, não seria consistente uma obra artística que se limitasse a mostrar, ainda que com requintes, atos de violência. Sua grandeza só poderia estar configurada quando a própria violência (ou o ciúme, o amor etc., isto é, o tema abstratamente concebido) emergisse e fosse percebida para além de suas manifestações ou possibilidades particulares, presentes ou passadas. É na evocação, na transposição do tempo e das contingências, no salto ou na instituição de um modelo ou visão universal que a transcendência emprestaria suas virtudes à obra de arte. Mas o simulacro não dominaria apenas o âmbito artístico, senão toda e qualquer imagem de nossa atualidade. Isso porque a imagem já não se constituiria a posteriori, como referência a um mundo tangível, lógica e cronologicamente anterior. Ao contrário, ela inverte hoje esta sucessão causal. A realidade que se vive e se imagina é concebida previamente, de modo técnico, a fim de que possamos reproduzi-la e conformá-la ao cotidiano. O "real" converteu-se em um espelho da mentalidade e dos interesses que os centros produtores de imagens massivas e supra-reais nos oferecem a todo momento, sedutoramente (cinema, televisão, vídeo, informática, publicidade). A vida "nua e crua", deve agora assumir uma conformidade com a imagem virtual - um processo mágico de reflexão, de absorção, de distração e de irônica fascinação em frente ao espelho das telas. Este processo contaminou de tal forma o antigo real, que este passou a ser a representação invertida da imagem técnica: um fenômeno de massa sem profundidade ou diferença, sem falsidade ou verdade, indistinto no bem e no mal, amoral, submetido à lógica de uma implosão de significados. "A vida - diz Baudrillard - é hoje um travelling, um percurso cinético, cinemático, cinematográfico". E o maior desejo de qualquer mortal é tornar-se uma imagem, a única realidade concreta, o único destino sagrado, o denominador comum da política, do social, do econômico, do artístico ou do esportivo. Todo fenômeno que não se tornou imagem técnica nos meios de comunicação não existiu, não foi, não é. Já para Guy Debord (A sociedade do espetáculo) ou Eduardo Subirats (A cultura como espetáculo), a civilização técnica e industrial reproduziria nos objetos de arte os mesmos valores abstratos de qualquer outro bem econômico, ou seja, um valor de troca apenas mercantil, que independe da própria densidade criadora e subjetiva. O nexo entre a criação e o valor que a obra artística simulada adquire seria pura magia, idolatria (no sentido pejorativo), festa, entretenimento e espetáculo. Submeter-se-ia à mesma lógica do uso prático e imediato (o que no terreno da cultura se chama filistinismo): a de ser algo efêmero, rapidamente consumível, volátil ou descartável, a fim de que o mecanismo encadeado de produção, de consumo e lucro, este sim, prevaleça.

Fontes: Dicionário Sesc: a linguagem da cultura / Newton Cunha. São Paulo: Perspectiva: Sesc São Paulo, 2003; Dicionário de teatro / Luiz Paulo da Silva Vasconcellos. Porto Alegre: 3ª ed., L&M, 2001.

21.1.06




Polidez e identidade: a virtude do simulacro
Jair Antonio de Oliveira
Índice
1 Introdução 1
2 Polidez, simulacro e identidade 1
3 Polidez e Prozak: a identidade ajustada
5
4 Enfim @ Yahoo 6
5 Referências 7
1 Introdução
A reflexão desenvolvida aqui convergirá para
um aspecto típico da dimensão social das
interações: a polidez e a sua relação com
a "produção"da identidade individual. Enquanto
norma, institucionalmente investida
de uma carga simbólica, a polidez convertese
em ritualização de gestos e discursos e assume,
com freqüência, uma função ambivalente
de inclusão e exclusão dos indivíduos
no espaço e na temporalidade em que é constituída.
Diante desta complexa realidade, o
que é considerado uma "regra de convivência"
posiciona identitariamente os indivíduos
nas diferentes ocasiões e, ao mesmo tempo,
no intercurso dessas figurações sociais, é redimensionada
pelos usuários da linguagem
como "ações políticas"que invocam uma escolha
típica da contemporaneidade, ou seja:
Mestre em Lingüística (UFPR). Doutor em Ciências
da Comunicação (USP). Pós-Doutor em Pragmática
Lingüística (IEL-UNICAMP).
a escolha entre "ser"e "parecer"com a intenção
de dar sentido às práticas e relações sociais.
Metodologicamente, optamos por uma
perspectiva Pragmática Lingüística, pois
como diz Rajagopalan (2002, p. 41), "a
identidade de um indivíduo se constrói na
língua e através dela. Isto significa que o
indivíduo não tem uma identidade fixa anterior
e fora da língua". Pragmaticamente
falando, as ações polidas são fundamentais
para refletir sobre a construção de identidades,
pois dão uma moldura simbólica e material
para os movimentos intencionais dos indivíduos.
Deste modo, a abordagem pragmática
deve voltar-se para o estudo das motivações
sociais subjacentes às escolhas lingüísticas,
para a análise das restrições que os
usuários encontram ao fazer uso da linguagem
e, finalmente, que espécies de efeitos foram
gerados por esses usos. O objetivo central
é ressaltar que, apesar da espetacularização
dos procedimentos polidos lingüísticos
e não-lingüísticos,tais comportamentos têm
uma função regulativa importante nas "negociações"
das identidades individuais.
2 Polidez, simulacro e identidade
A polidez tem sido abordada a partir de múltiplas
perspectivas e embora não haja uma
definição conceitual a respeito, concorda-se
2 Jair Antonio de Oliveira
que envolve o uso de estratégias verbais e
não-verbais a fim de manter a interação livre
de problemas. Como objetivo inicial da interação,
as estratégias ligadas à polidez visam
transmitir uma imagem positiva do usuário a
fim de obter um retorno favorável para o propósito
em questão. Posteriormente, configuram
o discurso e o comportamento dando início
à negociação pragmática de acordo com
as circunstâncias. Como "norma"social re-
flete o conjunto particular de prescrições explícitas
que cada sociedade possui e que fixa
comportamentos, estado de coisas ou maneiras
de agir em determinadas situações. Há
uma expectativa por parte do interlocutor de
que as ações do "Outro"sejam polidas, e essa
motivação tem uma base social, cultural e,
principalmente, política. É preciso cuidado
para que a associação da polidez com as
ações discursivas não se resumam à qualidades
abstratas que se fixam em enunciados
específicos, itens lexicais ou morfemas, sem
considerações às condições particulares que
regem o seu uso.
Historicamente, a polidez já esteve relacionada
à vida na corte e pertencer a essa casta
significava comportar-se de acordo com os
seus costumes dentro de um rígido esquema
cerimonial que determinava os papéis individuais.
O comportamento polido, embora representasse
um fardo para os indivíduos, era
fundamental para relacionar o sujeito com as
suas "origens"e por isso era reiterado e considerado
exclusivo das "pessoas de bem e de
berço". Mesuras e salamaleques, esses signos
do corpo, tornavam a polidez um equivalente
ao espetáculo. O que importava, antes
de tudo, é o que o olhar do Outro captava
desses gestos, que tinham como referência
regras diferentes daquelas de hoje: a
equivalência para "ser"era o aparato e a desenvoltura
do espetáculo. A marca de distinção
tornava-se uma prática de ilusão, ou
seja, adquirir uma identidade significava se
comportar em público como em uma espécie
de palco, de cenário, onde a representação
de elementos simbólicos garantia a inserção
do sujeito no mundo aristocrático: "ser"era
simular.
A simulação é fingir ter o que não se tem.
Como observa Baudrillard (1991, p. 9), alguém
que simula uma doença determina em
si próprio alguns dos respectivos sintomas,
portanto, põe em causa a diferença do "real"e
do "imaginário". O simulador não está "fingindo"
quando se apresenta como um indivíduo
polido, pois se ele "imita"tão bem as atitudes
aristocráticas é porque também o é. As
figurações das tensões no âmbito da corte,
por exemplo, contribuíam para a "construção"
de uma identidade individual onde a rigidez
do cerimonial e os gestos solenes eram
vitais para a sua associação com a noblesse
de robe. Evidentemente, as regras de etiqueta
não eram responsáveis por uma organização
racional, no sentido moderno, do espaço
da corte; mas essenciais para a construção
identitária, uma vez que a incorporação
dos comportamentos e procedimentos corteses1
representava prestígio e marcava simbolicamente
a divisão de poder entre os indivíduos.
Não havia, no caso, mudança na hierarquia
que não se expressasse como mudança
na etiqueta. Em contrapartida, a
menor alteração no posicionamento das
pessoas na etiqueta significava uma alteração
no ordenamento social da corte e da
sociedade de corte. Por esse motivo, cada
1 Neste trabalho os termos "cortesia", "polidez"e
"etiqueta"têm o mesmo contorno semântico.
www.bocc.ubi.pt
Polidez e identidade 3
indivíduo era extremamente sensível a
toda e qualquer mudança na engrenagem,
vigiando com atenção as mínimas nuances
para que o estado de equilíbrio hierárquico
fosse conservado ( ELIAS, 2001,
p.105).
Neste sentido, a polidez está associada à
auto-imagem pública das pessoas, que é permanentemente
monitorada, seja pelo indivíduo
que realiza as ações consideradas polidas
como por parte de seu interlocutor. Esta
situação remete para a noção de face (GOFFMAN,
1979; BROWN; LEVINSON, 1978,
1987), mas tal conceito precisa ser repensado
a partir de uma perspectiva Pragmática, com
o seguinte entorno:
a) "face"é uma "propriedade"criada em
sociedade de forma coletiva e transpassada
ao indivíduo por meio das crenças
de cada grupo e cujos resultados são negociáveis
nas interações;
b)embora o indivíduo possa "negociar"os
resultados de sua face, a autonomia que
obtém é relativa;
c) trata-se de uma autonomia relativa pois
está sujeita às correlações que o indivíduo
estabelece nas interações. Essas correlações
refletem as negociações, variações
e adaptações aos dados objetivos
da situação imediata e, na mesma proporção,
aos dados psicológicos percebíveis.
Sob o rótulo "psicológico"estão
os elementos cognitivos e emotivos das
pessoas. Os elementos emotivos, por
exemplo, são traduzíveis como disposições
afetivas e de engajamento indispensáveis
para a manutenção e continuidade
das interações.
Os conceitos de “face” e “polidez”
encontram-se intrinsecamente relacionados e
não se trata apenas de uma questão de construção
de imagem, mas de identidade. O
modo "como"o sujeito deseja ser visto ou
se apresenta em público vai além da performance
do corpo e da língua, pois envolve aspectos
simbólicos e psicológicos nem sempre
perceptíveis que são responsáveis por
comportamentos sociais individuais. Não
se deve esquecer que os seres humanos são
mais complexos que as categorias e os estereótipos
que procuramos atribuir-lhes. Obviamente,
a visibilidade da "forma"garante
num primeiro momento a inserção do sujeito
nos lugares sociais, mas nem sempre a aquisição
ou manutenção do status quo pretendido,
pois como disse Foucault (1987): "a
visibilidade do indivíduo é a sua própria armadilha".
Na sociedade de corte a etiqueta era vital
para garantir a ligação com o grupo prestigiado
socialmente e, conseqüentemente, mostrar
o que se "era". Na atualidade, o processo
de construção identitária não prescinde dos
comportamentos polidos, mas os relaciona
com o Ethos do século. Os costumes agora
exigem ações de simpatia para com os outros
(NIETZSCHE, 1986). Desde pequeno,
"o bom burguês"aprende a denunciar a vulgaridade,
a falta de respeito e o individualismo
mesquinho, atributos "estranhos"à sociabilidade.
Evita-se cuspir no chão e enfiar
os dedos na salada ou no nariz (pelo menos
em público), pois isto denunciaria o transgressor
como alguém que desconhece os códigos
de conduta em sociedade.
Com o surgimento de novas formas de
identificação trazidas pelos movimentos feministas,
ecológicos, homoeróticos etc, são
inúmeras as transformações sociais e histówww.
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4 Jair Antonio de Oliveira
ricas, no entanto, as pessoas ainda rejeitam
ser classificadas como "estranhas"ou "desviantes"
da "boa educação"(polidez). Tamanha
é esta armadilha que mesmo os indivíduos
que questionam publicamente a sua identidade
sexual, um tabu para a maioria, relutam
em ser apanhados pelo viés da impoliteness2,
pois, simbolicamente, isto equivale a
adotar a performance sexual que rejeitam3.
No diálogo de um filme que me escapa o título,
o sujeito homoerótico diz ao interlocutor:
"não seja rude querido, pois sexo é educado!"
A ambigüidade desta fala aponta para
pressupostos nem sempre levados em consideração,
ou seja: como formas de subjetividade
(identidade) são realidades lingüísticas
e não uma realidade natural e como a crença
preconceituosa se manifesta materialmente/
simbolicamente no contexto da polidez.
"Transformando-se no século XVIII naquela
polidez eminentemente democrática
que exige dos homens o polimento de seu
ser a fim de eliminar toda e qualquer aspereza
que possa distingui-los uns dos outros
nas suas relações"(LUCCHESI-BELZANE,
1993, p. 27), a sociedade deste século consagra
em seu ethos o simulacro, exercitado
por meio da polidez, que se imiscui em todas
as relações sociais, tornando-se uma força
determinante para a formação da identidade
em nível pessoal. Fingir ser o que não se é
torna-se uma espécie de paroxismo4 e simpatia,
concordância, aprovação, generosidade,
2 Reluto em traduzir impoliteness como impolidez,
ou falta de polidez. Não sei se existe este oposto.
3 Identidade sexual onde o sujeito encontra-se
"deslocado", "desajeitado", "violentado".
4 Estágio de uma doença, ou de um estado mórbido,
em que os sintomas se manifestam com maior
intensidade. A exaltação máxima de uma sensação ou
de um sentimento (FERREIRA, 1975, p. 1039).
tato, são invocados para dar sentido às relações.
Impera o marketing da cooperação
permanente entre os seres humanos e ações
lingüísticas politicamente corretas, a contraparte
verbal da cultura somática contemporânea,
se expandem como formas de maximizar
benefícios para o Outro. O simulacro
e a polidez adquirem o prestígio de um núcleo
de produção de identidades fixas que se
revelam unicamente no “parecer”.
O marketing dos bons sentimentos
relaciona-se à atual cultura somática, representada
pelo culto ao corpo, e tem como
propósito permitir que os "desconhecidos"
sociais se transformem em simulacros
das figuras cuja notoriedade foi construída
pela força e exposição na mídia. Já que
não é possível ter o que se deseja e nem
ser eleito pelo marketing para a exposição
publicitária permanente, simula-se os
atributos físicos dessas figuras célebres
(FREIRE COSTA, 2004). A contraparte
desse processo, o discurso politicamente
correto, parte do pressuposto de que as
alterações nos comportamentos lingüísticos
levam, necessariamente, à ações renovadoras
no mundo, o que justifica um cuidado
extremo com a escolha lexical e com a
“forma” da língua. Ao representar nas
escolhas lingüísticas o espírito da época,
apenas se transfere de dimensão o culto ao
“parecer”, adornando os termos como se
esses fossem corpos moldados e, portanto,
mais ágeis semanticamente para agirem
em/na linguagem/mundo. O engano ao se
colocar o adereço de corpos e língua como
impulso para qualquer transformação social
está em não se levar em conta o jogo do
simulacro implícito em toda essa situação. O
gesto polido perdeu a relação simbólica que
tinha com a posição do sujeito no mundo
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Polidez e identidade 5
e passou a representar a presença do corpo
no mundo, realidade marcada unicamente
pela materialidade das ações, que pode ser
traduzida como o objetivo de representar
em si, por meio do somático, a identidade
idealizada.
O exemplo da linguagem politicamente
correta, que procura evitar a discriminação
e o preconceito nos discursos, não pode se
esquivar de uma paranóica busca por um
modelo ideal de uso. Trata-se de impingir
aos usuários um procedimento e uma taxonomia
de escolhas lexicais, sem verificar
como a rede de crenças individual foi estabelecida
pelas combinatórias lingüísticas que
quer substituir. As redes de crenças são fundamentadas
nos desejos individuais e coletivos,
exigindo uma constante atenção para as
circunstâncias e motivos em que são internalizadas.
Por isto, qualquer tentativa de “modelar”
usos da linguagem está destinada ao
fracasso, uma vez que tais empregos constituirão
unicamente de simulações.
O simulacro não é destituído de virtude,
mas qual a virtude de uma sociedade simulacro,
onde gestos e discursos tendem a representar
sempre o que não se é ou não se
tem? Quando a totalidade das ações é simulação,
já não se pode estabelecer mais uma
diferença entre o ser e parecer. Qual a diferença
entre os quadros pintados pelo holandês
Veermer e as “imitações” feitas por
Van Meergeren5, que só foram “identificadas”
quando o próprio "falsário” as denunciou?
Essas produções artísticas constituem
5 Van Meergeren reproduziu dezenas de quadros
de Veermer, todos considerados autênticos pelo experts
em arte flamenga do século XVI e XVII. Criou
novos quadros atribuídos à Veermer, como "Cristo em
Emaús". Hoje, é possível visitar o museu com as
obras do "falsário"na Holanda.
o que Umberto Eco chamou de "hiporrealismo",
isto é, a representação que procura
fazer com que todos acreditem na realidade
que representa. Não são apenas telas, quadros,
mas projeções de construções identitárias
associadas à "tipos"ideais:
Esse irrealismo arquitetônico produz, em
nível escultural, os corpos nus dos atletas,
do Gênio da Vitória, de Wamper, dos
guerreiros de Arno Breker, são academicamente
corretos; bíceps e deltóides bem
colocados, as mulheres têm até seis, parecem
verdadeiros. Mas "parecem". Porque,
olhando ao redor, percebemos que
essas figuras alegóricas se assemelham,
não são indivíduos, mas tipos simbólicos
abstratos; o realismo sabe sempre até
onde ir (ECO, 1989, p. 56).
3 Polidez e Prozak: a identidade
ajustada
Soma era o nome da droga da felicidade
inventada por Aldous Huxley no romance
"Admirável Mundo Novo". As pessoas ingeriam
Soma para ficarem ajustadas aos padrões
biológicos e comportamentais impostos
pela tirania em que viviam. Esse "modelador
psíquico"criava um estado de felicidade
permanente, permitindo às pessoas se
harmonizar com a vida e seus semelhantes,
ou seja: a instância da polidez era alcançada
pela ação da droga em nível de fisiologia celular.
No contexto atual, o Prozak (Cloridrato
de Fluoxetina), usado por mais 20 milhões
de pessoas em todo o mundo, parece
conferir confiança social aos habitualmente
tímidos. Depois de usarem a droga, os pacientes
recuperavam o verdadeiro eu, e aquele
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6 Jair Antonio de Oliveira
eu invariavelmente revelava ser mais extrovertido,
confiante e com maior capacidade de
recuperação (ROTHMAN, 1994, p. 6). Os
relatos de pessoas cujos sentimentos de infelicidade,
melancolia e falta de energia são
tão constantes que isto já é parte integrante
de suas personalidades, passam a variar depois
de tomar Prozak. Essas novas "identidades"
geradas pelo incremento das ações do
neurotransmissor serotonina são caracterizadas
como "agradáveis"e a polidez é reestabelecida
com o apoio da psicofarmacologia.
Obviamente, as intervenções médicas e
farmacológicas trazem mudanças significativas
ao processo de adaptar os pacientes
às normas prevalecentes, e isto também
se aplica à dinâmica da redescrição
das identidades pessoais dos envolvidos nessas
"curas". Nessas circunstâncias, a polidez
não será apenas o resultado das alterações
subjetivas individuais, mas o reflexo
da pressão coletiva para representar/criar um
"eu"devidamente ajustado ao contrato social.
Não se trata unicamente da busca do aumento
do prazer, mas da adequação a uma
cultura somática, onde o simulacro torna os
indivíduos "normais"por meio da polidez e o
consumo de um farmaco possibilita aos que
apresentam "dolorosos sintomas"uma sensação
de mudança positiva no seu jeito de existir.
Derrida (1991, p. 46-52) observou que
"não há remédio inofensivo. O phármakon
não pode jamais ser simplesmente bené-
fico.(...) o phármakon contraria a vida natural.
O phármakon produz o jogo da aparência
a favor do qual ele se faz passar pela
verdade". E relacionando o phármakon à escritura
afirma: "ela se joga no simulacro".
4 Enfim @ Yahoo
Guliver, em sua última viagem por lugares
distantes, chega à Terra dos Houyhnhnm,
que significa "cavalo", e na sua etimologia
"a perfeição da natureza"(SWIFT, 1984,
p.231). Nesse lugar, os seres irracionais são
os humanos, chamados de Yahoos, cujos atributos
são: a preguiça, a maldade, a traição, a
vingança e o forte apego à sujeira. Tais seres
odiavam-se entre si mais do que outras espécies
animais. O motivo estava na própria
odiosidade de suas formas que não podiam
ver nos outros, mas apenas em si mesmos.
Para os Houyhnhnms, Guliver também é um
Yahoo e por mais que tente esclarecer o seu
desgosto por assim ser identificado, seus esforços
são em vão. Ao longo de sua estada
nessa terra, Guliver empenhou-se para dissociar
a sua imagem e identidade da natureza
bruta, degenerada e irracional dos Yahoos.
"Meu principal esforço foi aprender a língua
que o meu senhor (como doravante o chamarei),
seus filhos e criados da casa desejavam
ensinar-me"(ibidem, p. 205). Era preciso
parecer racional, benevolente e amigo,
decente e civilizado como os habitantes dessas
plagas. Aprender a língua dos Houyhnhnms,
demonstrar cuidados de higiene com
seu corpo, cuidar na escolha dos alimentos
e mostrar deferências nas relações com os
eqüinos tornou-se a prática cotidiana de Guliver.
Com o tempo, imitava tão bem os seus
anfitriões que, não fosse a forma física, seria
considerado um igual. O infortúnio fez
com que Guliver tivesse que retornar ao seu
lar na Inglaterra, mas ele jamais esqueceu as
palavras do alazão no momento da despedida:
"Hnuy illa nyha, maiah yahoo"( ibid.
p.253), ou seja: "Tenha cuidado consigo,
gentil Yahoo"(o negrito é meu). A idenwww.
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Polidez e identidade 7
tidade se constrói na língua, e não é preciso
muito esforço para perceber como os
@ Yahoos têm disseminado "a coisa que não
é".6
5 Referências
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulações.
Lisboa: Relógio d,água, 1991.
BROWN, P. ; LEVINSON, S. Politeness.
Cambridge: CUP, 1987.
DERRIDA, Jacques. A Farmácia de Platão.
São Paulo: Iluminuras, 1991.
ECO, Umberto. Sobre os Espelhos. Rio:
Nova Fronteira, 1989.
ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Rio:
Zahar, 2001.
FERREIRA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário
da Língua Portuguesa. Rio:
Nova Fronteira, 1975.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 15 ed.
Petrópolis: Vozes, 1987.
FREIRE-COSTA, Jurandir. O Vestígio e a
Aura. Rio: Garamond, 2004.
LUCCHESI-BELZANE, Martine. Um Vazio
Essencial. In: Polidez. Porto Alegre:
L&PM, 1993.
NIETZSCHE, F. On truth and lie an extramoral
sense: In: Desconstruction in
context. Chicago: UCP, 1986.
6 Uma tradução para "mentira"na língua dos alazões.
RAJAGOPALAN, Kanavillil. O Conceito de
Identidade em Lingüística. In: SIGNORINI,
Inês (Org.). Língua(gem) e Identidade.
Campinas: Mercado das letras,
2002.
ROTHMAN, David. Artigo jornalístico. São
Paulo: jornal Folha de São Paulo, Caderno
Mais, ed. 27/02/94, p.6-6.
SWIFT, Jonathan. As Viagens de Guliver.
Rio: Edições Bloch, 1984.
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Amo iluminuras. Que estranheza essa que me causam. Essa feérie de cor e forma convidando a uma investigação minuciosa.
Acredito que, se alguém ama selos e vitrais fatalmente descobrirá que na verdade ama iluminuras.
São pequenas janelas para o passado.
Dificilmente um selo poderia alcançar a profusão de significados de uma iluminura. Um selo já tras todos os seus símbolos revelados. Compartilham, no entanto, esse mundo da miniatura. Um mundo que exige um acuramento das percepções. O mundo ao qual se viaja por um trajetp centrípeto.