17.3.08

Amor pelas ruínas

Os livros de Próspero. Livro XX:

"Um manual de antiquário, um inventário do mundo antigo para os humanistas da Renascença interessados em antigüidades. É repleto de mapas e planos dos lugares arqueológicos do mundo, como templos, cidades e portos, cemitérios e estradas antigas, contendo também as medidas de cem mil estátuas de Hermes, Vênus e Hércules, descrições de cada obelisco e pedestal do Mediterrâneo conhecido, planos das ruas de Tebas, Óstia e Atlântida, um diretório dos pertences de Sejanus, as lousas de Heráclito e as assinaturas de Pitágoras. É um volume essencial para o historiador melancólico que sabe que nada perdura. Suas proporções são como as de um bloco de pedra, quarenta por trinta e por vinte centímetros. A cor é de mármore azul estriado. Arenoso ao toque, tem páginas rijas e crespas, impressas em fontes clássicas que não possuem o W nem o J."

16.3.08

Repostagem de amor às ruínas

O Jardim Selvagem
Para Michel

Os igarapés parecem prender a noite dentro de seus espelhos. A negrura guarda a profundidade, a cobra monstruosa da perenidade. Minha infância é turvada do visgo, do lodo do remanso. A imaginação da criança amazônica é um manancial de assombrações tão prazerosas quanto terríveis. Lá o sol se mantém eternamente crivado pela copa das árvores, um sol inerme. O abismo das águas é o que me fustiga a imaginação de moleque-bicho.
O rio dos meus medos e brinquedos levou o meu irmão. Num lugar tão permeado de água não seria outro elemento a mais tragar a juventude. Ele foi lá e achou mais do que eu. Achou o termo e decidiu a própria sorte. Há tempos não choro, que estranha saudade essa de chorar. A maturidade me secou as lágrimas e assim, destituído de toda autopiedade, sou árido.
A intimidade com os monstros do rio era o esbarro do peixe boi na canoa fina, não mais que um graveto.
A casa do interior na minha infância era duas casas; uma noturna, uma diurna. A diurna quase não conhecíamos porque de dia as crianças ganham mundo, vão experimentar os medos das cacimbas, do rio, dos igarapés, da casa de farinha, do além da estrada que, como o fundo do quintal, era o próprio reino do perder-se pra sempre. Mais medo tínhamos do igapó. No igarapé era a mãe-d’água, jacaré, boiúna; mas no igapó era o sumidouro, águas sem fundo onde quem botasse o pé já era pra não mais voltar. Ficava ali perdido dentro d’água entre as raízes, ou afundava pra sempre, sempre afundando até perder o nome e virar o menino do igapó. O mais estranho nesse lugar do medo, o igapó, é que, quem cai ali não morre, vive ali, esquecido, sumido. Aqui em Salvador fiquei longe da morte do meu irmão. Foram-se dez anos sem que o visse. Agora está no fundo do rio. Minha aridez de estátua jacente deve seguir lamentando numa representação suspensa, eterna e sem lágrimas. Imagino sua sombra com um rosto adolescente mal iluminando o negrume do fundo do rio.

Artimanhas da Loba

Literatura Revolucionária
por Neuza Noronha

Ontem, pesquisando sobre literatura, dei de cara com um site que ensina, em 10 passos, a transformar um espaço qualquer em um blog literário. Achei tão divertida a coisa que resolvi tentar. Os primeiros passos ignorei. Segundo dizem, é de suprema importância não haver cores além do preto no branco. Isso eu pulo. Não abandonaria o meu vermelho nem por todo sonho de ser alguém na vida.
Os demais passos dizem respeito à escrita. Um blog literário tem que ser inovador. A linguagem deve ser revolucionária e a estrutura das frases, inusitada. Tem-se que escrever algo de forma que o significado não seja claro. Quanto mais dificil o entendimento do leitor, mais valor ele dará ao texto. Tudo deve começar pelo título. Ele precisa ser chamativo, mas hermético. Não se pode esquecer que a primeira impressão é a que fica. Então o título tem que ser bem pensado e bem elaborado. E o resto, dizer tudo sem necessariamente dizer alguma coisa.
Não sou dada a modismos, mas resolvi ser modeira por um dia. E lá fui eu fazer o texto hermético. Aproveitei o tema combinado com a Dorita e a minha vontade de dizer não-dizendo para testar a minha capacidade de ser uma literata!
Mas o teste é com você. Se você nada entender, estou no caminho certo. Então, não se aflija. Pode continuar sendo simpático, mas não precisa colocar uma lupa para decodificar as entrelinhas. O chique é você sair daqui com aquela sensação de que eu escrevo tão bem que você, mesmo ótimo leitor, não conseguiu me alcançar!
Vamos lá?

Carta-convite ao clandestino de mim

Perdi a cabeça na guilhotina. Os pés devem estar encostados nas nuvens. Não importa. Não quero saber em que me transformei. Quero ser o algo que deixou de pensar para apenas sentir. Uma coisa qualquer pendurada na linha que limita o bem e o mal. Quero apenas sentir esta coisa que vem de dentro marcando o compasso de uma música que apenas eu sei cantar. Perder-me indefinidamente nos porquês sem respostas e marcar sucessivos encontros comigo mesma. Esquecer compromissos e dar férias à vida que corre paralela ao meu desejo. E quando eu não me bastar, quero estar em você. Desligá-lo de si mesmo e conectá-lo nas minhas córneas. Olharemos ambos para o centro da nossa terra. Inventaremos o nosso cataclismo e viraremos chafariz. Jorraremos espumas no tempo e apagaremos as pegadas do relógio. Deixaremos de ser e passaremos a estar no encontro clandestino de cada um de nós. E numa composição atemporal criaremos o perfume de nós dois. Pelo tanto que durar o canto do nosso encanto.* * *

Beijos divertidos a quem conseguiu chegar até aqui! Seja otimista: valeu pela
lady day!

14.3.08

Ouroboros na cosmogonia cabocla

Os mais velhos contavam essa quando nós os miúdos nos mostrávamos curiosos demais, ingratos ou insatisfeitos pelo modo como são as coisas.



No começo não tinha noite.
Antes era sempre dia.
Todo mundo reclamava porque não tinha hora de descanso, não se podia dormir.
A cobra-grande guardava a noite escondida dentro de um caroço de tucumã. Ela morava na cabeceira do rio dentro do tronco de uma árvore.
A cobra grande tinha uma filha.
Um dia o filho do cacique quis casar com a filha da cobra-grande.
Ela mandou o caroço de tucumã para a filha; mandou três índios levarem o presente rio abaixo e disse a eles que não abrissem o coco.
Eles entraram na canoa e desceram o rio e no meio da viagem ficaram curiosos com os barulhos que podiam ouvir dentro do caroço de tucumã. Eram os barulhos da noite.
Eles tiraram a cera que fechava o caroço e de repente tudo ficou escuro. A noite tinha escapado de dentro do coco e não tinha mais dia.
Era só escuridão.
Os índios que estavam na canoa se perderam e viraram macacos da noite.
Quando tudo ficou escuro a cobra-grande soube que os índios tinham deixado a noite escapar de dentro do caroço de tucumã e resolveu deixar tudo assim mesmo que era para dar uma lição na humanidade.
E ficou sendo noite o tempo todo.
O povo da aldeia ficou preocupado, mas a filha da cobra-grande contou o que sabia sobre o caroço de tucumã onde sua mãe guardava a noite e resolveu subir o rio e pedir que guardasse a noite de novo porque o povo já não podia caçar nem pescar e tudo estava em confusão. A cobra-grande então resolveu que não ia fazer ficar sempre dia não, mas que ia fazer ficar um pouco dia e um pouco noite.
Foi assim e é como tem sido até hoje.