29.12.07

O olho que insiste é o que vê





Benazir
Chico César
'não aponte o dedo
para Benazir Bhutto
seu puto ela está de luto
pela morte do pai
não aponte o dedo para benazir
esse dedo em riste
esse medo triste é você
benazir resiste
o olho que existe é o que vê'

2.12.07

Teatro de Bonecos

Ela _ Ela possui mil braços e em cada mão apenas o indicador. Os dois pés são como patas de elefante que se levantam alternadamente e com grande esforço por conta do peso de quinhentos braços que cada um suporta. Na cabeça quatro orifícios, três miram cegos os pontos cardeais, o globo ocular único gira livremente dentro da cabeça.

Ele _ Ele se constitui de um corpo longo e esguio, sem membros, na extremidade inferior foi acoplado um lado de patim, o direito, que se move pela força de seu pensamento. Na extremidade superior também apenas um olho, com um só orifício frontal, o que só lhe permite olhar para frente.

Ela e Ele vivem cada qual em uma das extremidades de uma tábua de leis que oscila sobre os ombros de um corcunda. O corcunda não precisa se preocupar com o equilíbrio da tábua, apenas a sustenta e, mesmo sabendo da existência deles ignora de que lado da tábua cada um está. Isso lhe poupa julgar as oscilações que sente.
O corcunda é fiel em sua função e não se importa muito com o peso que carrega. Está feliz em imaginar os movimentos que aqueles fazem para fazer oscilar a tábua.
A queixa do corcunda é a falta de possibilidades de manobra.
Um estranho pássaro amarelo vem constantemente lustrar as quatro rodas do patim d’Ele e catar as pérolas barrocas que Ela lhe oferece como alimento.

Ela costuma gritar as leis inscritas na tábua. Um escriba cego traduz para um gravador em trinta e seis línguas mas, terminada a fita apaga o já gravado e recomeça.

Ela _ O que está em cima é igual ao que está em baixo, o que está em cima permanece em cima, o que está em baixo permanece em baixo.
( Ao dizer isso aponta com vinte braços direitos para cima e dezenove braços esquerdos para baixo. O escriba traduz em grego para o gravador).

Ele rola seu patim para equilibrar a tábua que oscilou sob o movimento dos trinta e nove braços d’Ela. Faz isso para aliviar o trabalho do corcunda.

Ela _ Um peso e uma medida. Para cada peso uma medida.
(Lança uma pérola para o pássaro que a apanha no ar antes de sumir entre nuvens).

Vez ou outra uma pérola cai, por distração, no chão. O corcunda é suficientemente estúpido para deseja-la, mas nunca pôde alcançar nenhuma. Isso faz do chão um terreno não muito seguro para o corcunda e para todos sobre ele. Apenas o corcunda sofre com a consciência disso.

21.10.07

Desconcerto



O Teatro Gente-de-Fora-Vem e a Cooperativa Baiana de Teatro apresentam DESCONCERTO. Encenação do texto de Diana Raznovich, inédito no Brasil.
Temporada de 18 a 27 de outubro (Quinta à Sábado) às 20 hs.
Teatro Gregório de Matos. Praça Castro Alves, s/n – Centro.
Contato: Gabriela Sanddyego. Tel. (71) 8818 7949
Ingressos: R$ 6,00 (inteira) e R$ 3,00 (meia)








Desconcerto é um monólogo onde a pianista Irene della Porta fala com seu público sobre o pacto que fez com seu empresário para tocar o Som do Silêncio no lugar da Sonata Patética de Ludwig Van Beethoven. Este pacto a atormenta mas, paradoxalmente, lhe traz um enorme êxito profissional já que o público lota seus “desconcertos” para aplaudir seu fracasso. Estreada em 1981, no Ciclo de Teatro Aberto, em Buenos Aires, durante o período da ditadura militar argentina, esta obra já foi traduzida e representada na Alemanha, Espanha, Itália e Inglaterra, transcendendo os localismos alude às condições de vida que a fascistização de qualquer sociedade humana. O texto de Diana Raznovich foi considerada pelo Jornal El País, da Espanha, como uma das “mais belas e poéticas manifestações teatrais de nossa própria repressão”.



Direção: Juliana Ferrari
Assistência de Direção: Monize Moura
Elenco: André Rosa
Preparação Vocal: Janaína Carvalho
Operação de Luz e Som: Cláudio Mendes
Produção Executiva: Gabriela Sanddyego e Zero71 Marketing e Entretenimento
Artistas Convidados
Figurino: Tarcísio Almeida
Cenário: Fábio Pinheiro
Maquiagem: Pedro Costa
Design Gráfico: Leon Bucaretchi



Verdadeiramente adorável o cartaz do Leon mostrando o piano como ausência. Ele não tinha nenhuma outra referência porque o piano utilizado em Desconcerto ainda não existia. Este é um espetáculo que parte da sinceridade de intenções. Como se vê nas fotografias o piano continua representrando a ausência ou a intenção de existir. Que existir será esse que nunca se manifesta e que serão todos estes equivocados ensaios de existir que nos humilham?



O Teatro Gente-de-Fora Vem é uma companhia, sediada na cidade de Salvador Bahia, e atualmente membro da Cooperativa Baiana de Teatro. Desenvolve há quatro anos trabalhos de pesquisa continuados na área de Artes Cênicas.


(Fotografia de André Rosa como Irene Della Porta em Desconcerto.



Os desenhos que ilustram a postagem são charges de Diana Raznovich)

4.9.07

Os que desbravam, os que elucidam

Depois de tanto tempo longe das luzes da cidade volto a Salvador e não me sinto um cego agradecido por retomar a visão destes escolhos, andrajos elegantes, deslumbres inconseqüentes atados à ditadura da novidade. Não sou dos que militam contra o progresso, mas acho importante desconfiar dele. Meditar sobre o que perdemos em troca de facilidades tecnológicas.
Fico triste. Parece que nunca teremos outro Vermeer. Ele que soube aproveitar e entender tão bem a luz do dia através de uma janela como um toque que doura e dignifica o nível do facilmente digerível e perceptível e (claro) lúbrico, como tema e a penumbra que lhe fazia oposição e ocultava a gama de significados necessários ao mistério e à tudo que, por permanecer indecifrável, é o lugar de sobrevivência da arte.
Não é tão alegre acionar um interruptor e ver despejar-se agressivamente a luz amarela de uma lâmpada elétrica como era alegre, intimamente alegre, o acender dos candeeiros. Um ritual magnífico quando se levantavam os adultos todos juntos seguindo pelo corredor escuro. Logo uma luz mortiça na cozinha e o cheiro delicioso de querosene. Avançavam o corredor cada qual com seu candeeiro como uma procissão e depunham-nos sobre as mesas ou penduravam-lhes aos ganchos presos nos caibros do telhado. Sempre em silêncio ou murmúrio porque logo em seguida o radio faria soar a ave-maria.
Fico imaginando o que meditavam sobre a invenção dos candeeiros os acostumados à fricção do sílex.

30.8.07

Sobre a futilidade do progresso

', Et Cetera' de Jan Svankmajer

Quede, cadê?

É improvável que possa entender como foi possível esquecê-lo por tantos anos. Afinal qual a última vez que dele me lembrei? Esqueci.
Quando dei por sua falta? Como sou descuidado!
Quando o procurei? Se houvesse procurado talvez, ao encontrá-lo, o guardasse em outro lugar. Que outro lugar? Mas, afinal, qual foi o primeiro lugar onde o deixei? Definitivamente nunca o procurei. Talvez nem o perdera a não ser em minha memória. Estarão perdidas as coisas das quais não lembramos? Quantas coisas estarão assim não achadas por não procuradas, por nem lembradas. Coisas tantas. Um pedaço imenso que nos constitui sem o sabermos.
Não há tantos lugares onde procurar, aliás, há. Tantas mudanças... Talvez tenha ficado pelo caminho. Eu lhe tinha tanto apego! Não, se fosse apegado eu o mudaria de um lugar para outro e haveriam muitos lugares impregnados de seu significado e todos estes lugares me obsedariam com o peso de sua existência.Lembro muito bem da primeira vez. Não, não lembro. Estranho, por mais que retroceda não me é possível lembrar quando... Ah, mas me lembro como! Não, não lembro. Minha vida, agora percebo, é um ‘roll’ de negações sistemáticas.

29.8.07

O Jardim Selvagem

Quero muito poder um dia reunir minhas anotações sobre as relações do caboclo amazônico com as plantas. São mitos e costumes extraordinários.

Lavadas as carnes vermelhas o enxágüe era reservado para com ele serem regadas certas plantas. A ‘jibóia’, a ‘jiboínha’, o ‘tajá’. A planta ‘curada’ desenvolvia o poder de materializar, à noite, uma jibóia ou de criar a imagem de uma jibóia para afastar intrusos. A imagem de um homem ou preto-velho também poderia ser criada por estas plantas. Caso a planta, depois de curada, de receber pela primeira vez a água com sangue, não recebesse constantemente esse tratamento, ela se voltaria contra os donos da casa, não mais os protegendo de intrusos ou atraindo má-sorte. Depois de iniciado o encantamento era necessário manter a ‘obrigação’.
Minha avó paterna mudava de casa levando suas plantas. O caminhão de mudanças parecia um jardim móvel. Nas casas o jardim ocupava o pátio e as laterais da casa. Vasos, latas de manteiga, vasilhas plásticas, baldes tudo em desordem. Plantas sustentando plantas num arranjo caótico. As samambaias e avencas em profusão. Roseiras, crótons e bananeiras.
Entre os talos das palmas da bananeira ali eram depositados nossos cabelos cortados para voltarem a crescer mais saldáveis. As graxas, que lá se chamavam pampolhas, cresciam próximas à cerca ou substituíam parte dela. A roseira-de-cacho entremeava-se aos gradis das janelas deixando as casas da minha infância estavam sempre em penumbra. Lembro de deitar folhas de papel ao chão e desenhar as silhuetas das plantas que se projetavam desde as janelas.

Gosto das lendas indígenas que falam da metamorfoses de seres humanos em plantas. Dentre as muitas que ouví das bocas de minhas avós e tias antes mesmo de conhecer o mito de Narciso e Eco, que também adoro, está a do Tamba-Taja.

'Havia um índio que, por muito amar sua esposa, levava-a sempre consigo para todo lugar, fosse para caçar, pescar ou lutar. Certa vez, o índio teve que ir para a guerra, mas a esposa estava doente, sem poder andar. Não querendo separar-se de sua amada, ele fez um saco com folhas de bananeira, para carregá-la nas costas. Durante o combate, sua amada foi ferida e morreu. O índio, desesperado de amor, enterrou-se junto com ela. No lugar onde jaziam seus corpos, nasceu um tajá diferente, pois atrás de cada grande folha verde da planta nascia uma pequena folha de forma vaginal. Renasciam assim os amantes, unidos novamente para sempre'.


Waldemar Enrique (1905-1995) compôs 'Tamba-Tajá'

Tamba-tajá me faz feliz
que meu amor me queira bem
que meu amor seja só meu
de mais ninguém
que seja meu,todinho meu,
de mais ninguém.
Tamba tajá me faz feliz...
Assim o índio carregou sua macuxi
para o roçado, para a guerra, para a morte...
assim carregue o nosso amor a boa sorte...
Tamba-tajá me faz feliz...
Que mais ninguém possa beijar o que beijei
que mais ninguém escute aquilo que escutei
nem possa olhar dentro dos olhos que olhei.
Tamba-tajá
Tamba-tajá

Para ouvir ou baixar em mp3 a composição executada no 1° Encontro Nacional de harpistas clique aquí.
E aquí, pelo youtube, uma homenagem a Waldemar Henrique pela Orquestra Sinfônica do Teatro da Paz tendo Mateus Araújo como rejente.

20.8.07

Só o que trago dos anos 80

Quase nunca ouço música americana mas gosto de Cyndi Lauper e especialmente do álbum 'Sisters of Avalon'(com Jan Pulsford). Dentre suas músicas a que mais ouço é 'Mother', que me causa um estranhamento que beira o místico (e me faz lembrar Hamlet!). Encontrei um comentário atribuído à Cyndi Lauper sobre esta canção no blog 'Brothers and Sisters of Avalon'. Acho bastante confiável porque o discurso parece mesmo com o dela.


"Jan começou a escrever esta canção no Hotel Okura em Tóquio. Jan e eu terminamos ela Connecticut e Tennesse. Shang Shang Typhoon fez a harmonia nesta canção. Como a canção começou a ser escrita em Tóquio, eu e Jan precisavamos de alguém como Shang Shang Typhoon envolvido nesta canção. Eles (grupo de S.S. Typhoon) têm uma existência muito misteriosa, eu sinto como se eles estivessem vindo de um outro planeta mas quando eles entraram em nosso ritmo, eu percebi que eles são realmente maravilhosos. Esta canção é sobre nossa terra, a re-descoberta da terra. Nós, vivemos numa civilização em forma útero materno . Eu também tenho um útero porque eu sou uma mulher e eu tive que mudar o modo que eu penso quando eu percebi que esta civilização está toda conectada pelo útero de uma mãe... Eu escrevi esta canção num dia em que a lua parecia tão azul que isso me inspirou a cantar sobre esta terra e nós... é muito memorável".


Gosto muito desta foto de um disco recente, ela de 'glam lady' diante de NY saindo de um bueiro. Ela nasceu no Queens.

Site oficial de Cyndi Lauper

O comentário seguinte atribuído a Syndi Lauper e onde ela fala sobre a canção 'Love to hate', encontrei no blog 'Brothers and Sisters of Avalon' de Fábio Henrique.

"Como 'You Don´t Know', esta canção também surgiu quando eu estava muito chateada. A história é assim: Um dia, eu fui a um bar cheio de pessoas que estavam lidando com negocios de espetáculo. Eles não sabem qualquer coisa sobre o assunto, mas estavam conversando sobre artistas. Eu penso que isto é tão terrível o quanto eles não se preocupam com outros, mas o assunto se fixou nisso!
Eu disse que estava tentando algo novo, um homem me disse " Ei, isto não é possível para você e até mesmo porque esta é coisa ruim para fazer " (os Leitores não sabe o que Cyn estava tentando para fazer) Então eu pensei : "Quem decidiu que isto é ruim"? Eu estava tão furiosa. Eu poderia dizer que até mesmo se ele finge ser um bandido, dentro dele existe uma pessoa muito conservadora, que segue bem firme ali dentro. Assim, este sentimento que eu tive, me fez pensar nesta canção. Nigel Pulsford e William Witmann deram o acabamento instrumental nesta canção e eu também toco guitarra nela."

Praças e livros

Poderia dar-lhes nomes, mas não é o que melhor as representa. Vi muitas todas incrustadas na urbanidade. Ás vezes áridas, ás vezes cálidas de vida, sempre oásis. Muitas propõem o descanso no caminhar em si, quando seus canteiros se estreitam centenas de metros entre vias paralelas. Todas devem ter uma estátua, nem todas as têm. Para algumas seria o único simulacro de presença humana, algo que as justifica na lembrança de quem não mais as pode visitar quando ninguém mais o faz.
É um lugar de respirar, só lembramos disso quando lá estamos.
Ali sob os cajueiros onde, encarapitado, ensaiei meus primeiros jogos eróticos. Onde os flamboyans rivalizavam com as nuvens de final de tarde em flamejações. Onde nós moleques assavamos pardais e tanajuras.
Foi em uma praça que os encontrei, os livros. Antes pensava que só existiam enciclopédias, que conhecia de lhes ver as figuras e onde tartamudeei as primeiras palavras numa época de primário de escola pública. Nem sabia existir bibliotecas e aquela, móvel (a propriedade que todo livro quer ter e nem sempre consegue) veio substituir em igual vertiginosidade, os brinquedos que dali em diante só serviam de espera para o momento mais feliz de ver a combi chegando com eles, os livros. Como girar nas argolas se Sherazade contava estórias para livrar o próprio pescoço a cada noite de mil e uma? Como duvidar entre a gangorra e o banco de madeira onde Marco Pólo dialogava com Kublai Khan? Porquê ver os gansos na lagoa e deixar os corvos de Põe?

18.8.07

Sobre como encher a barriga do Rei

"Agora explicarei brevemente como o tipo de coisa chamada fábula foi inventada. Estando o escravo sujeito a ser punido por qualquer ofensa, e como não ousava dizer francamente o que desejava dizer, projetava seus sentimentos pessoais em fábulas, e se esquivava da sensura com o pretexto de brincar com histórias inventadas"

Fedro, Prólogo ao livro III, Babrius and Phaedrus

7.8.07

TEATRO DE SOMBRAS


O teatro de sombras é manifestação artística muito popular em diversas regiões do continente asiático. Para historiadores como Meher Contractor (1982), tudo iniciou na Índia, já para Max von Boehn (1972), o berço dessa tradição é a China. Cada um dos historiadores apresenta dados, silhuetas antigas, que datam de 2.500 anos e 3.000 anos atrás, que pertencem ao acervo de museus tentando comprovar que naquele período o teatro de sombras já era praticado nos dois países. Tamara V. Fielding (2002) afirma que na ilha de Java o teatro de sombras era popular há mil anos atrás. Estudos também confirmam a existência desta arte na Tailândia e Taiwan.
Na Grécia e no norte africano, especialmente na África mediterrânea, existem amplos registros da existência do teatro de sombras, chegando finalmente a Europa ocidental a partir do século XVIII. A discussão sobre a geografia onde o teatro de sombras começou a ser praticado e ainda hoje se mantêm como expressão viva é importante na medida em que possibilita compreender as relações, conexões e diferenças existentes nas distintas formas como é realizado em cada região. No entanto, o objetivo deste estudo é compreender como se dá o trabalho do ator no teatro de sombras no oriente.

O Teatro de Sombras na China

O teatro de sombras e o teatro de marionetes da China estão intimamente ligados ao teatro cantado de atores. Representam só um repertório e obedecem ao mesmo calendário. São realizados mais freqüentemente por apenas um manipulador, mas também são encontradas companhias formadas por muitos atores-animadores. Os marionetistas solistas são chamados de Mestres, porque guardam um pouco do prestígio que envolve os mágicos e outros artistas populares. Antigamente eram atores itinerantes que iam de cidade em cidade para a festa no templo local. Hoje, na maioria das cidades residem artistas que circulam pelas vilas próximas. Vale destacar dois aspectos interessantes do teatro de sombras na China: o princípio de recreação que estimula o contato com um mundo mágico e o aspecto educativo do mesmo.
A lenda que conta o nascimento do teatro de sombras na China pode revelar aspectos interessantes para compreender a estética desta arte.
O Imperador Wu Ti, da dinastia dos Han, teve o desgosto de perder sua dançarina predileta. Havia vinte anos que ele governava com sabedoria e juízo o Império Celeste e seu reinado era dos mais gloriosos de todos os tempos. Mas Wu Ti era muito supersticioso e acreditava nas artes mágicas. Quando a dançarina morreu, ele, no seu desespero, voltou-se para o mágico da corte, exigindo que fizesse voltar a linda defunta, do país das sombras. Ameaçado de pena de morte, o mágico não perdeu a cabeça... Numa pele de peixe, cuidadosamente preparada para torná-la macia e transparente, recortou a silhueta da dançarina, tão linda e graciosa como ela fora. Numa varanda do palácio imperial, mandou esticar uma cortina branca em frente a um campo aberto. Com o Imperador e a corte reunida na varanda, e à luz do sol que se filtrava através da cortina, ele fez evoluir à sombra da dançarina, ao som de uma flauta e todos ficaram alucinados com a semelhança. (Obry, SD:20)
Alguns elementos contidos na lenda remetem a reflexões e permitem considerações como: quando diz "recortou a silhueta da dançarina tão linda e graciosa como ela fora" dá a referência da imagem real, da imagem cotidiana para a produção das silhuetas deste teatro. O "mágico marionetista" reproduziu a imagem da dançarina da forma mais fiel possível. A impressão é de que não ousou incluir qualquer detalhe que não reproduzisse a imagem da amada do Imperador. Isso se confirma quando fala da manipulação: "fez evoluir à sombra da dançarina... e todos ficaram alucinados com a semelhança." Ou seja, no teatro de sombras chinês, os movimentos da animação da personagem são selecionados para reproduzir os movimentos humanos no seu cotidiano. A expressão "semelhança" remete tanto a esta referência sobre o real como pode ter a conotação de "verdade", de convencimento, de movimento verossímil capaz de tornar crível que a imagem projetada era mesmo à da dançarina predileta do Imperador.
É interessante perceber que certas referências do cotidiano são mais perceptíveis e presentes no teatro de sombras chinês do que noutras expressões do teatro de sombras do sudeste asiático, principalmente quando comparadas à Índia e Jaza. Isso se evidencia quando se tem como referência o teatro de sombras contemporâneo chinês. Segundo o marionetista e professor Qi Yongheng, da província de Habei - China, em curso ministrado na França em 1982 no Instituto Internacional da Marionete, o teatro do seu país se caracteriza por:
-dramaturgia cujos temas são a vida cotidiana, acontecimentos do dia a dia capazes de reforçar valores como amizade, solidariedade, respeito à autoridade, à natureza.
-o marionetista é valorizado por sua capacidade e destreza na manipulação das silhuetas, tornando-se virtuoso na medida em que reproduzir movimentos capazes de se assemelharem ao dos animais e seres humanos representados.
-As silhuetas, tanto em seus movimentos quanto nos seus traços de confecção são criadas partindo da observação do real, ou seja, obedecem proporcionalidades entre tamanho do corpo e membros.



-A partir de 1966, com a Revolução Cultural, passam a abandonar muitos dos recursos comumente utilizados no espetáculo adaptando-os a esta situação. Novos tipos de varas de manipulação e lâmpadas foram providenciadas, alterando a estética dos espetáculos. Os marionetistas solicitaram ao governo a produção de varas de acrílico para substituir as varas de bambu, freqüentemente utilizadas na manipulação das silhuetas. Estas novas varas garantiram a impossibilidade do público desvendar os mecanismos de articulação das silhuetas.
-Também passaram a usar lâmpada fluorescente, às vezes denominadas lâmpadas frias, abandonando as outras formas de iluminação. Estas lâmpadas exigem que a silhueta permaneça colada à tela para que aconteça a sua adequada projeção. Refletem exatamente o desenho, a forma da silhueta recortada. Os efeitos de deformação poética da imagem (ampliação e diminuição da imagem produzindo imagens fantásticas e irreais, deformadas, não acontecem quando esses recursos são utilizados). Com este tipo de lâmpadas as imagens mostradas ao público através da tela são exatamente as antecipadamente desenhadas e recortadas pelos marionetistas.
No entanto, seria equivocado dizer que se trata de um teatro naturalista ou realista. É um teatro altamente estilizado, com movimentos e gestos cuidadosamente controlados, com figurinos e cores portando significados específicos. O teatro de sombras chinês é estilização, simbologia e inventividade. Não é realismo, mas economia de meios. O trabalho vocal do narrador, as distintas modulações da voz afastam o espetáculo da estética naturalista. Usam o seguinte princípio: para dizer algo de forma figurada não recorrem à forma abstrata. Mesclam, dosam, uma ação cotidiana com um som estilizado. Essa mistura torna essa arte distinta.
O ator no Teatro de Sombras Chinês
Tradicionalmente iniciava seu aprendizado aos 4 anos de idade, aprendendo com o pai ou membro da família. Era a formação por tradição, e o aprendizado se dava observando o trabalho do pai e obedecendo a execução de rigorosos exercícios para dominar a manipulação. O pai, ou parente, o Mestre ia desvendando os segredos da profissão ao aprendiz, até atingir maturidade para iniciar seu trabalho independente. Os princípios mais importantes a perseguir nesta etapa da formação eram: dominar a dramaturgia; aprender a confeccionar as marionetes; ser exímio manipulador. Para isso necessitava de longo período de aprendizagem, exigindo a realização de exercícios físicos diários, sobretudo dos dedos, pulsos e braços, mesmo não trabalhando diretamente no espetáculo. Um dos grandes desafios é manipular as silhuetas nas cenas de combate onde os guerreiros aparecem montados em cavalos totalmente articulados. É preciso habilidade para manipular 15 varetas e fios, simultaneamente, de forma sincronizada produzindo gestos e ações que impressionam pela beleza e veracidade. Em meados dos anos de 1970, com a criação das academias, o ensino não está restrito ao aprendizado na relação pai e filho. Hoje, crianças com tenra idade vão para a escola de marionetes e lá aprendem esta arte com reconhecidos professores. (1)






AQUI LINKS PARA VÍDEOS INTERESSANTES
A Cia Articularte produziu 'O Valente Filho da Burra'. Sobre o espetáculo leia aquí no site da companhia. A seguir um vídeo com trechos:
Shadowlight Productions: Monkey King at Spider Cave fundada por Lerry Reed (aquí o site: http://www.shadowlight.org/slp/ )
‘A Salamanca do Jarau’ da Lumbra
http://www.youtube.com/watch?v=bcXllRfXN-g
‘Bolha Luminosa’ da Lumbra
'Vivência no teatro de sombras' com a Lumbra
http://www.youtube.com/watch?v=sPUEg1GhAuY
‘Dream of a tree promo reel’
http://www.youtube.com/watch?v=GvN1f1AA9J0
‘Teatro de sombras tradicional do Cambodja’
http://www.youtube.com/watch?v=Q4dbpETAr60
‘Documentário sobre construção das figures para teatro de sombras chinesas: http://www.youtube.com/watch?v=Zj1dvIg1DIA
‘A arte das figuras do teatro de sombras’
http://www.youtube.com/watch?v=muhHgUlyzBc
‘Aula sobre construção de sombras’
http://www.youtube.com/watch?v=JfP5nbfhjMw
‘Karagoz, teatro de sombras da Turquia’
http://www.youtube.com/watch?v=9G4RzqcYt7g
‘Sombras Chinesas -vista do público
http://www.youtube.com/watch?v=zq4fVPPvhD8
‘Sombras Chinesas- vista do manipulador
http://www.youtube.com/watch?v=AUtZdXNtixU
‘Teatro de sombras de Java’
http://www.youtube.com/watch?v=spTzL27vAKk
(serão anexados novos links a esta matéria além de outros artigos afins)
(1) texto de Valmor Beltrame (Nini) Doutor em teatro e professor UDESC