5.12.05

Viagens

AtempoSite do conjunto especializado em música medieval, com descrição de instrumentos, textos e muitos links.
Chanson du XVe siècleFacsímile de livro francês editado em 1875, contendo diversas canções francesas do séc. XV
Late Antique & Medieval ManuscriptsSite em inglês com imagens de diversos manuscritos medievais, alguns relacionados à música

Große Heidelberger Liederhandschrift (Codex Manesse)

Zürich
1305 bis 1340
Weitere Informationen: Projektseite
Digitalisiert nach: Codex Manesse - die große Heidelberger Liederhandschrift. Vollständiges Faksimile des Codex Palatinus Germanicus 848 der Universitätsbibliothek Heidelberg. Frankfurt a.M., 1975-1981.
Literaturhinweise

16.10.05

Iconografia da Loucura

DA ICONOGRAFIA, DA LOUCURA, DA HISTÓRIA
THEREZA DE B. BAUMANN*
Gravura 1BRANT, Sebástien. La Nef des Fous(Ed. original Bâle, 1494). Strasbourg : La Nuée Bleue, 1977, p. 342.
Com efeito, a linguagem da cruz é loucura para aqueles que se perdem,mas para aqueles que se salvam, para nós, é poder de Deus( 1, Cor. 1, 18-25).
Resumo
Este artigo analisa a representação iconográfica do louco no contexto do século XVI através da obra de Bruegel O Combate do Carnaval com a Quaresma. Instrumento de auto-compreensão, figura bifronte, espelho da humanidade que reflete a dualidade de cada ser, o louco emerge como símbolo da ambivalência que caracteriza a concepção de "humanitas" no Renascimento.
Palavras Chave: Iconografia, imagem, louco, identidade, alteridade, humanismo, renascimento.
Em 1559, Bruegel, o Velho(1), pinta o quadro O Combate do Carnaval com a Quaresma, reproduzindo uma cena festiva na praça de uma aldeia com os costumeiros festejos que marcavam o fim da quaresma e o advento da Páscoa(2). O artista representa, aí, uma metáfora da ambigüidade do ser humano, sobretudo do homem cristão, dividido entre as tentações dos prazeres mundanos, das paixões desenfreadas e o compromisso com a moderação, com a austeridade que deveria caracterizar o homem cristão verdadeiramente piedoso, temente a Deus e preocupado com a sua salvação. O combate simulado entre o Carnaval e a Quaresma, representado no primeiro plano do quadro, simboliza essa luta. Mas uma luta travada através do humor, da alegria, do riso, um riso ritual, o risus paschalis. O riso fora condenado na Idade Média como o mal que vient de saisir l'âme. Hugo de São Vitor(3) comenta a de inepta laetitia, condenando todos os movimentos exagerados do corpo que acompanhavam o riso. Mas nem sempre o riso foi detestável, odioso: São Bernardo, falando sobre o "risus", faz uma distinção entre este e "cachinatio" ( palavra que ele evita usar), termo que teria uma conotação diabólica e que significa gargalhada. Segundo São Bernardo, o corpo deveria brilhar com a explosão do amor espiritual interior... que brilha em cada palavra, olhar, riso..., um riso pleno de honestidade... Mas o "risus paschalis", (tradição que ainda persistia no século XVI), assim como o "riso de natal", seria um riso muito mais livre e descontraído do que o admitido por São Bernardo, porque derivaria, segundo Bakhtin(4), das tradições das saturnais romanas. De acordo com esse autor, a tradição antiga permitia o riso e as brincadeiras licenciosas no interior da igreja na época da Páscoa. Já do púlpito, o padre liberava aos fiéis toda a sorte de brincadeiras como histórias alegres com um tom carnavalesco referente à vida material e corporal. A alegria surgia como um meio de extravasar as energias acumuladas após um longo período de contenção, jejum e abstinência sexual: o riso era autorizado, da mesma forma que os alimentos até então interditos, bem como a vida sexual. O riso brotava como uma significação positiva, como fonte regeneradora, capaz de restaurar, renovar. E, como "riso ritual", possuía um caráter transformador, utópico. Um caráter de recriação de uma nova vida que se exprime na vitalidade, na intensidade que emana das imagens do quadro de Bruegel.
Como diz Panofsky, o conteúdo das imagens é apreendido pela determinação daqueles princípios subjacentes que revelam a atitude básica de uma nação, de um período, de uma classe social, a crença religiosa ou filosófica, qualificados por uma personalidade e condensados numa obra(5). Uma definição que tem, sem dúvida, pontos de contato com a compreensão de Chartier em relação à História Cultural. Segundo esse autor, a História Cultural tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada e dada a ler(6).
Gravura 2BRUEGEL, Peter (o velho). "Le Combat de Carnaval...", in Tout l'oeuvre peint de Bruegel l'ancien.Paris : Flammarion, 1981.
E o que poderíamos "ler" nas imagens de Bruegel? Segundo a proposta de Panofsky em seus estudos sobre a perspectiva, poderíamos, inicialmente, observar a construção espacial do quadro O Carnaval e a Quaresma que, como aponta Tolnay, guarda ainda elementos medievais. O artista não se utiliza da perspectiva italiana, apesar de conhecê-la, mas constrói o espaço valendo-se de recursos comuns às ilustrações medievais. Nesta composição utiliza-se, ainda, de um tipo de ilustração peculiar ao final da Idade Média quando era empregado um plano levemente inclinado, como o da praça da aldeia onde desenrolam-se as cenas dos festejos. Ainda de acordo com Panofsky, poderíamos observar a cena valendo-nos da metodologia que ele propôs para a análise da obra iconográfica, o método iconológico. Este método de interpretação que é o que interessa a nossa análise, exigiria, do observador uma série de conhecimentos. Seria necessário familiaridade com fontes artísticas, literárias e históricas, o conhecimento de símbolos, ou daquilo que esse autor designa como sintomas culturais, ou seja, a compreensão da maneira pela qual, sob diferentes condições históricas, tendências essenciais da mente humana foram expressas por temas e conceitos específicos(7).
Conseqüentemente, teríamos que dispor de uma série de conhecimentos específicos, "instrumentos de trabalho", imprescindíveis à eficiência de nossa análise. Saber, por exemplo, que Bruegel, um pintor flamengo do século XVI, nasceu e viveu nos Países Baixos (que então faziam parte do vasto império dos Habsburgos) durante um período de grande turbulência religiosa, política e social. Um tempo de antagonismos e descontentamentos que seriam levados às últimas conseqüências com as severas restrições políticas e religiosas impostas por Felipe II. A população dessa região já tinha, em inúmeras ocasiões, se sublevado, como o provam as rebeliões de Liège, Bruges e as grandes lutas contra Felipe o Bom, contra Carlos o Temerário, Felipe o Belo e Carlos V. A intolerância religiosa sob Felipe II, de Espanha, tornar-se-ia um instrumento de terror e a revolução, inevitável, irrompeu sob a liderança de Guilherme de Orange, dos Condes de Egmont e Hoorn. Contou, ainda, com o apoio de burgueses e da pequena aristocracia. Surgiram, nessa ocasião, principalmente na região do Baixo Flandres e na região de Tournai, uma espécie de guerrilheiros, os "mendigos do mar", recrutados entre os miseráveis. Eram os "gueux"(8) (os piolhentos) dos Países Baixos retratados algumas vezes por Brueghel. Um tempo de fome, miséria, epidemias, agravado pela intolerância religiosa que resultava na luta entre cristãos, tanto católicos como reformados.
Gravura 3BRUEGEL, Peter (o velho). La kermesse de Hooboken, in Tout l'oeuvre peint de Bruegel l'ancien.Paris : Flammarion, 1981, p. 95.
Bruegel era católico, gozou das boas graças de Felipe II, da proteção do "seu todo poderoso ministro", Cardeal Granvelle, este, aliás, aficcionado pelas artes, colecionador de livros, esculturas e quadros(9). Apesar de suas origens modestas, não era um simplório Suas relações de amizade demonstram-no. Foi amigo de Abraam Ortelius, cosmógrafo do rei. Desde sua viagem à Itália, Bruegel estabelecera relações com o grande geógrafo Scipio Fabius de Bolonha. Foi amigo de Jêrome Cook (o grande impressor), que editou suas obras pelo menos a partir de 1556. Viveu em Antuérpia até 1563, local onde o comércio florescia e que era também um centro de "livres pensadores", intelectuais e membros de seitas que defendiam a liberdade religiosa. Entre seus amigos contavam-se artistas e intelectuais como Franz Hogenbergh (gravador), Christoph Plantin (célebre editor acusado de heresia), Jan Rademaker, Hubert Goltzius, D.V. Coornhert (católico fervoroso, mas defensor da liberdade religiosa) e, ainda, por exemplo, Henri Nicolaes, fundador de uma seita religiosa cujo ideal era um ponto de vista "libertino"em matéria de religião e um estoicismo em relação à vida(10). Um convívio que demonstra a sua sofisticação cultural e a possibilidade de um questionamento em relação à intolerância religiosa (a inquisição local era extremamente severa) e à dominação espanhola, não obstante a proteção recebida de Granvelle que, embora fiel ao rei, não era um religioso fanático. Em 1563, Bruegel retirou-se para Bruxelas, aparentemente movido por questões familiares, mas talvez temeroso em levantar suspeitas e ser perseguido por suas relações - Granvele, seu protetor, deixaria o cargo em janeiro de 1564 - , fato que não parece impossível quando se sabe que, ao morrer em 1569, pediu a sua mulher que queimasse inúmeros desenhos e pinturas que pareciam-lhe por demais críticos, podendo trazer à família conseqüências desastrosas(11). Ao que parece, conteriam alusões veladas, mas mordazes, aos acontecimentos políticos do momento. Alusões como, por exemplo (na gravura que analisamos), aos cinco mendigos que representariam as cinco classes sociais simbolizadas nas figuras do rei, do bispo, do guerreiro, do burguês e do camponês. Além disso, a presença de caudas de raposas presas às capas dos mendigos, seriam, segundo Tolnay, uma alusão ao descontentamento com a administração de Felipe II. Ou ainda, como na representação da Quermesse Hooboken, onde Bruegel insere um estandarte com a inscrição Deixem os camponeses celebrarem a sua quermesse(12). O artista refere-se aí, naturalmente, às proibições às festas populares e religiosas ou à tentativa de discipliná-las a partir de um edito de Carlos V ( 1531), mas cumprido severamente sob Felipe de Espanha. Também no quadro Ataque aos Camponeses ou Massacre dos Inocentes, a referência à política repressora e violenta do Duque de Alba parece evidente, embora a obra seja anterior ao massacre em Naarden(13).
Embora sem se deixar levar pela atração da perspectiva italiana - o espaço alto, como denomina Panofsky - , Bruegel renova e monumentaliza a arte flamenga, sua herança nativa; sob muitos aspectos, observa Tolnay, será fiel aos "gêneros menores" da pintura flamenga, nobilitando esse "gênero menor" e elevando-o, assim, ao nível da "grande arte". Mas, ao mesmo tempo, ele incorpora alguns aspectos fundamentais da arte italiana renascentista e algumas das suas características são de um pintor do Renascimento; ele aplica às suas composições o príncipio dos grandes conjuntos, o equilíbrio das massas e das formas, conferindo-lhes, simultaneamente, caráter escultural e monumental (principalmente nas últimas obras), e demonstra possuir uma concepção microcóspica do espaço. Sintetiza a silhueta, mas guarda a visão de conjunto sem perder o toque vibrante. A sua técnica e o seu estilo são inseparáveis do conteúdo de suas imagens e constituem uma linguagem plástica. Mas, por suas soluções decorativas, por sua abundância de motivos, analisa Tolnay, Bruegel "toca" ainda a Idade Média. O quadro O combate do Carnaval com a Quaresma pertence à fase inicial de suas primeiras composições que representam a vida humana. O caráter particular da pintura é alcançado pelo contraste entre as linhas rígidas da cena e os movimentos quase instantâneos dos personagens colocados no plano levemente inclinado da praça da aldeia. Um recurso (como já mencionamos) comum às ilustrações medievais. Sua arte, conclui Tolnay, é a própria síntese da Idade Média, da Renascença, da Reforma, dos filósofos da natureza e da liberdade de imaginação. Bruegel entra triunfante na Idade Moderna(14).
Dedicado inicialmente à pintura de paisagens - uma tradição flamenga - Bruegel, depois de sua viagem à Itália, volta-se para os aspectos da vida humana, enfatizando uma característica peculiar ao Renascimento: a emergência na arte da identidade nacional, da individualidade do povo e de suas especificidades culturais (o que coincide com a emergência e consolidação dos estados nacionais na Europa). Um aspecto inexistente na arte medieval, preocupada com a coletividade do cristianismo. Brueghel revela a identidade do povo flamengo através da pintura de cenas da vida cotidiana na aldeia, na cidade, no campo; retrata festas camponesas, religiosas, bodas, jogos, caçadas, figuras de pessoas simples, mendigos, aleijados, crianças, burgueses, soldados, mulheres....Uma abordagem característica de Bruegel, mas que surgira com o Mestre de Flémalle, ao representar os temas bíblicos e religiosos inseridos no ambiente do cotidiano flamengo. Como observa Tolnay, a vida humana é para ele, então, o mundo às avessas, o reinado dos loucos, o inverso daquele da natureza, reinado da razão(15). Aliás, Bruegel explicita essa concepção nos Provérbios Flamengos ao escrever em um estandarte pendurado à entrada de uma aldeia de loucos: o mundo de cabeça para baixo, no qual um globo é apresentado com a cruz virada para baixo, símbolo da inversão e compatível com a figura do louco, imagem recorrente em sua obra.
E é precisamente nessas imagens de Brueghel que podemos perceber aquilo que Bakhtin entende como a atitude que o Renascimento experimenta em relação ao riso, atribuindo a esse o profundo valor de concepção do mundo,considerando-o como uma das formas capitais pelas quais se exprime a verdade sobre o mundo em sua totalidade, sobre a história, sobre o homem; é um ponto de vista particular sobre o mundo. Uma forma de encarar jubilosamente, no plano do riso, a maneira de regular a vida e a morte(16).
A filosofia sobre o riso no Renascimento apoiava-se em julgamentos teóricos, principalmente em três fontes antigas que justificavam o riso enquanto forma de concepção de mundo. Uma das fontes mais importantes foi a obra de Hipócrates, cujas observações sobre o poder curativo do riso, da alegria no tratamento dos pacientes, foi imensamente difundida, inclusive nas Faculdades de Medicina (como a de Montpelier, freqüentada por Rabelais), inspirando o Tratado do riso, contendo sua essência, suas causas e seus maravilhosos efeitos, de autoria do médico Laurens Joubert e publicada em 1560. Além da importância de sua observações, também o Romance de Hipócrates (isto é, sua correspondência apócrifa, texto anexo à Antologia de Hipócrates) constituiu-se em objeto de grande interesse. Esta obra trata da loucura de Demócrito manifestada através do riso. Segundo Bakhtin, o riso de Demócrito exprime uma concepção filosófica do mundo: tem como objetivo a vida humana com os seus vãos terrores e vãs esperanças em relação aos deuses e à vida de além túmulo. O riso definido por Demócrito (com o qual concorda Hipócrates) é uma espécie de instituição espiritual do homem que adquire sua maturidade e desperta. A segunda fonte de filosofia do riso era a obra de Aristóteles "sobre a alma" (De partibus animalium, livro III, cap. X), a partir da sua célebre definição: o homem é o único ser vivente que ri. Bakhtin observa que essa fórmula foi extremamente difundida e mesmo ampliada: o riso passa a ser considerado o privilégio espiritual supremo do homem porque concedido por Deus unicamente a este, simbolizando o poder do homem sobre a terra, da razão e do espírito, que somente ele detém. A terceira fonte da filosofia do riso no Renascimento é Luciano, que penetra na cultura humanista, segundo Robert Klein, em torno de 1440, e através de Alberti, um platônico do renascimento, músico, pintor, escultor, arquiteto e filósofo que viveu no século XV. Posteriormente, a filosofia do riso de Luciano foi difundida por Erasmo, Thomas Morus e Pirckheimer (humanista alemão). E é sobretudo através do seu personagem Menipo, que se ri no além túmulo, que Luciano ganha importância como autor desse período. Bakhtin sublinha, no Menipo que ri, o elo do riso com os infernos (e a morte) e com a liberdade do espírito e da palavra. Esta é, por excelência, a imagem do louco. Essas três fontes, diz ainda Bakhtin, definem o riso como princípio universal de concepção de mundo, e o relaciona com os problemas filosóficos mais relevantes, como saber bem morrer e bem viver. O riso do Renascimento reúne a riquíssima tradição popular medieval, sobretudo das festas dos loucos (apesar das inúmeras proibições), e a herança da Antiguidade, oriunda das fontes citadas acima. Desse modo, conclui Bakhtin, o riso da Idade Média, tornou-se, no Renascimento, a expressão da consciência nova, livre, crítica e histórica da época(17).
Gravura 4BRUEGEL, Peter (o velho). "Le Combat de Carnaval...", in Tout l'oeuvre peint de Bruegel l'ancien.Paris : Flammarion, 1981. Detalhe: Figura do Carnaval.
É através desse riso - o "risus paschalis" - e da alegria que transparece na cena festiva da aldeia, que podemos, por exemplo, observar como emerge a plenitude contraditória e dual da vida: a negação, a destruição, a morte do antigo (no caso da gravura analisada, a morte de Cristo pelos pecados do Homem), indispensável para o ressurgimento de algo novo, melhor, simbolizado na ressurreição do próprio Cristo, cujo sacrifício na cruz permitirá ao homem cristão almejar a salvação eterna. E é nesse sentido que o substrato material e corporal manifestado através da exuberância, da alegria e do riso, triunfa. Há, sem dúvida, nesse quadro de Bruegel (como aliás, em outros, como País de Cocagne, Festa de Bodas, Festa de São Martim, Provérbios Flamengos, etc), uma ênfase nesse aspecto do "baixo" corporal, através das inúmeras imagens de alimentos, de bebidas, de utensílios de cozinha, de símbolos fálicos, da exuberância ou do grotesco de algumas figuras, e, até mesmo, pela presença de detritos no chão: ossinhos de alguma ave, cascas de ovos, cartas de baralho, conchas de mexilhões, etc. E é interessante assinalar um aspecto plástico que Tolnay observou em sua pintura: diz esse autor que, não obstante a variedade de seus motivos, o mundo de Bruegel parece être créé d'une substance unie, sorte de hylé, qui a une onctuosité crémeuse presque comestible(18). Uma peculiaridade aliás almejada, diz ainda Tolnay, por muitos artistas do Renascimento, e que sublinha, naturalmente, a emergência do aspecto material e corporal presente nos quadros de Brueghel sob a forma festiva, universal e utópica. Desse modo, O combate do Carnaval e da Quaresma - como já mencionamos, uma metáfora da luta travada pelo homem esgarçado entre a culpa (morte eterna) e a redençã0 (vida) - é expresso por meio de imagens desse substrato corporal. Como podemos observar na gravura, essas imagens tanto mostram o comedimento, a penitência, o "lado sério", a morte, na figura da pálida Quaresma, como o crescimento, a fecundidade, a abundância - o mesmo "baixo" que devora e procria - e a vida, simbolizados na figura do rubicundo Carnaval.
Gordo, pançudo, enxudioso e despreocupado, o Carnaval cavalga um enorme tonel. Como estribos, usa caçarolas, e sobre a cabeça, como chapéu, um pastelão de onde escapam as pernas de uma ave qualquer. Nas mãos, um longo espeto com a cabeça de um porco, símbolo da gula, da luxúria. Pessoas fantasiadas e mascaradas cercam-no, fazendo alarido com instrumentos musicais improvisados, como era usual à época. Ao lado uma figura pequena (um anão?) mascarada, com um nariz imenso e desproporcional a sua pouca estatura, segura uma vara com duas pequenas tochas. Desde a Antiguidade e a Idade Média, o nariz(19) designava habitualmente o falo, cujo tamanho, ou seja, a virilidade do homem, correspondia à medida do nariz. Assim também, outras deformidades, como os ventres desmesurados das figuras do Carnaval e de um outro personagem, vestido de rosa-lilás e tocando viola, cujo enorme ventre contrasta obscenamente com os finos gambitos que são suas pernas. Atrás do Carnaval, uma outra criatura, imensa, vestida de negro, segura uma vela iluminando o gordo folião, e carrega na cabeça um enorme tabuleiro com tortas ou pães, uma delas atravessada por uma faca (sem dúvida, um símbolo fálico(20), semelhante ao que aparece enm um quadro. Aliás, a faca aparece repetidas vezes na gravura; na cintura do Carnaval e da rotunda figura de negro, nas mãos de um mascarado ao seu lado, na figura que acompanha o homem com a lanterna, nas da mulher que prepara o omelete ou nas daquela que limpa os peixes. A faca é, também, freqüentemente associada à idéia de provas iniciáticas, como, por exemplo, a circuncisão e, ainda, ao sacrifício, à morte, à imolação, como na passagem bíblica do Gênesis, quando Abrãao recebe de Jeová a ordem de imolar seu filho, Isaac. A freqüência da faca na gravura - tendo-se em vista, a temática da mesma - pode significar uma alusão ao sacrifício de Cristo. À direita, a Quaresma, esquálida, de uma palidez esverdinhada, metida em um burel cinzento (a cor das cinzas, da morte do corpo e da imortalidade do espírito(21)), é a própria imagem dos jejuns e mortificações, compatíveis com a personagem que representa. Ela empunha um remo em cuja extremidade estão dois arenques secos (lembrança do dias magros), simulando duelar com o Carnaval a sua frente. Sentada em um genuflexório colocado sobre uma carreta, é puxada por dois religiosos, uma freira e um monge. Uma colmeia faz as vezes de chapéu. A colmeia era o símbolo da comunidade organizada, ordeira, ativa, representando as ordens religiosas. A abelha do lado de fora é um sinal de que o inverno acabou, mas, sobretudo, significa Cristo ressuscitado. É, também, a imagem de Cristo pela doçura do seu mel e ao mesmo tempo, por sua picada, a do senso de justiça. O mel era consumido durante a quaresma e segundo uma tradição antiga, limpava os pecados(22). Por sobre a carreta e nas mãos das pessoas que acompanham a Quaresma (essas sem fantasias), vêem-se os alimentos permitidos durante os dias magros: mexilhões, roscas, "bretzel"(23) e pães. Crianças agitam matracas. Esses instrumentos eram tocados durante as cerimônias litúrgicas dos três dias da semana santa. Eram considerados os "sinos da semana santa"(24). Um sacristão distribui a água benta do sábado de aleluia. Ao lado direito, vê-se uma mulher com um bebê e uma escudela a pedir esmolas. Da igreja, de onde vem de adorar o Senhor morto, saem inúmeros fiéis, alguns carregando cadeiras ou genuflexórios, e outros portando ramos santos.
Gravura 5BRUEGEL, Peter (o velho). "Le Combat de Carnaval...", in Tout l'oeuvre peint de Bruegel l'ancien.Paris : Flammarion, 1981. Detalhe: Figura da Quaresma.
À esquerda, em frente ao albergue, encenam-se as Núpcias de Mopsus e Nisa, uma farsa burlesca que apela aos sentidos, ao amor e ao sexo, liberados após a abstinência da quaresma (ver gravura em anexo). A praça inteira se agita. Há como uma efervescência no ar. As alvíssaras da primavera, com todas as suas promessas, já se fazem sentir. Pode-se mesmo vislumbrar, ao fundo do quadro, por sobre o casario da aldeia, um tênue azul que se insinua no pálido cinzento do céu. As primeiras folhas verdes brotam das árvores à direita. É a vida que ressurge, a esperança que renasce em Cristo ressuscitado. As penas, os sofrimentos, as privações, impostas pela quaresma e tornadas mais pesadas pelo sombrio, infindável e gelado inverno, vão-se com as últimas neves. Vêem-se pessoas entregues a mil atividades diferentes: algumas apenas observam das janelas, crianças brincam e jogam, aleijados arrastam-se, mendigos, leprosos (identificados aqui pela capa com cauda de raposa, símbolo da degradação humana), vendilhões, beatos, donas de casa, burgueses, todos reúnem-se à multidão; à esquerda, mais ao fundo, vê-se a evocação burlesca da Disputa do Urso e de Valentin, uma farsa do ciclo de Carlos Magno (ver gravura em anexo) que representava uma caçada a um homem selvagem, geralmente encenada no fim do inverno e no início dos ritos de fertilidade na primavera. Por todo lado os preparativos para a Páscoa; uma mulher vende peixes, outra parece preparar omeletes ou bolos sentada em uma cadeirinha ao lado de um fogareiro improvisado. Os ovos colocados em uma tigela são, deduz-se pelo seu tamanho, de pata, cujo uso é comum ao norte da Europa. Uma mulher, no alto de uma escada, lava os vidros externos de sua casa, onde, em uma das janelas, várias tortas estão secando ao sol. Em uma viela ao lado, um homem dança em cima de um barril, estimulado por algumas pessoas, enquanto os esmoleres usuais da quaresma, em cortejo tradicional nessa época, vem em busca das usuais contribuições. Uma multidão reunida na praça aparentemente entregue aos mais diversos afazeres, mas participando de algum modo desse rito de passagem. É a vida que recomeça, que ressurge do corpo do Senhor morto. É a promessa de vida que o povo celebra na praça, a esperança da salvação merecida que os une e os anima. Porque a praça, nesse momento, está revestida de um caráter especial que ultrapassa a sua realidade temporal; é um espaço transmutado pela excepcionalidade desse rito de passagem, da celebração da morte para a vida, é o regosijo pelo tempo novo que se anuncia. A morte, simbolizada não só pela presença de Cristo, ainda morto, mas também pelos tons sombrios, crepusculares e noturnos que dominam as laterais da cena, as paredes da igreja, do albergue, e ainda pelos fiéis, que embora com suas roupas escuras, já deixam a igreja, levando nas mãos os ramos verdes, símbolo da ressurreição e compatíveis com o aspecto luminoso do centro da praça, com as atitudes descontraídas, e as roupas mais alegres daqueles que já participam dos folguedos.
Gravura 6"Querela do Urso e Valentim", extarída da obra El selvage en el espejo.México : Coord. Difusión Cultural, 1992, p. 124-126 .
A praça ganha, nesse momento, a transcendência do tempo e do espaço míticos, impregnada pela expansão do sagrado que transborda dos seus limites físicos e açambarca todo o seu entorno, espaço onde se reatualizará a cosmogonia primordial(25). Não apenas aquele espaço cotidianamente utilizado, freqüentado pelos seus habitantes nas lides rotineiras, mas o espaço mítico, o "omphalos mítico", da Paixão e da Ressurreição de Cristo. E é através da festa, do espaço-tempo da festa que emerge de forma mais aguda a presença do Sagrado, da plenitude do Absoluto orientada em função de certezas escatológicas. O tempo da festa é o tempo de expansão do Sagrado. Tempo no qual se rompe com o desgaste, com os constrangimentos da vida cotidiana, tempo de evasão de um espaço-tempo restrito, limitado; tempo durante o qual se mergulha no tempo primordial, no "illo tempore" o tempo das origens, da criação, das transformações, das metamorfoses. É nesse sentido que o homem pode participar da plenitude do Sagrado, de reinscrever na realidade humana a presença integral do "Grande Espaço" e do "Grande Tempo", a fim de reatualizar, de revigorar todo o Cosmos(26). Como diz Dumézil, é através da festa que Temporal e o Eterno se tocam, que o "Grande tempo" e o cotidiano se comunicam, o primeiro como que transpondo no segundo uma parte do seu conteúdo, dando aos homens a favor dessa osmose, o poder de agir sobre os seres, forças e acontecimentos que preenchem o primeiro(27). A festa, como observa Gusdorf, é uma espécie de nó, o momento de expansão do sagrado, quando ele invade, transcende o espaço e o tempo cotidianos. Porque a festa exprime, sob uma forma privilegiada, a ontologia da repetição. Ela reproduz o tempo e o espaço mítico. Um tempo e um espaço que podem se repetir indefinidamente, porquanto situados no tempo e espaço primordial, no "illo tempore". E que, conseqüentemente, podem estar localizados aleatoriamente em qualquer tempo e qualquer espaço. Como observa ainda Gusdorf, a festa aparece como uma liturgia global, como um fenômeno total; põe em jogo a sociedade unânime, cuja coesão se vê ao mesmo tempo, reafirmada: a comunidade, neste clima de paroxismo afirma-se como comunhão; a existência integral se transfigura(28).
Gusdorf assinala a importância da festa nas sociedades ditas "primitivas". E, como podemos observar, também em relação à Idade Média, a festa emerge como esse fenômeno total de que toda a comunidade participa. Uma atitude comum, diz Oronzo Giordano, às sociedades agrícolas que encontram na natureza os fundamentos de uma teologia própria: as plantas, os animais, e até os homens, tem dias de quietude, de repouso e de festa. Inspirado na alternância anual das estações, diz, ainda esse autor, o tempo da festa torna-se sagrado, litúrgico, porque, assim como as estações, as festas sucedem-se ciclicamente no tempo: um retorno, um repetir-se, um refazer-se contínuo(29). A festa guarda ainda um caráter marcante de reatualização do ato primordial, uma reprise dos gestos arquétipos do Homem, como nas festas dos inocentes, dos loucos, dos excessos, nos recebimentos, bodas, exéquias, dramas litúrgicos e que perduram, como sabemos, ainda no século XVI, como nesse quadro de Bruegel. É interessante observar, no quadro de Bruegel (e na sua obra em geral), justamente essa relação essencial do riso festivo com o tempo e a alternância das estações. Como assinala Bakhtin, a situação ocupada pela festa no calendário sazonal torna-se extremamente sensível nos seus aspectos extra-oficial, cômico e popular. Reaviva-se essa relação entre a alternância das estações, as fases lunares e solares, a morte e a renovação da natureza(30). No caso da gravura analisada, a relação, como já observamos, é nítida: o fim do inverno com o término da Paixão de Cristo e o início da Primavera com a Páscoa. Têm, como observou Sébastian Franck - um contemporâneo de Brueghel - , esse sentido de um repetir diário dentro do ciclo da natureza:
Un jour suit l'autre, le monde a un sens et toutes les choses se déroulent suivant un cycle, comme le soleil...C'est pour cela qu'on dit: Omnium rerum vicissitudo; ce qui fut n'existe plus, mais revient. C'est pour cela que toute la Bible doit recommencer: la chute d'Adam, l'Arbre de la connaissance, le repentir et pareillement la mort, la vie, les souffrances du Christ se répétent chaque jour à leur façon et toute l'histoire de la Bible...Tout se passe dans notre âme et, s'il arrivait que le Christe revienne réellement comme en verité il revient chaque jour et qu' il souffre, alors nous le crucifierions encore en complétant l'oeuvre de nos péres...Le monde est toujours monde.. .(31)
E o peculiar é que não se evoca, aqui, a Paixão de Cristo e a Páscoa valendo-se de cenas também comuns nessa época; as procissões ou encenações dos "passos da Paixão"(e Bruegel tem uma obra sobre esse tema). Mesmo o lado doloroso da Paixão é encarado com regozijo pela perspectiva que encerra. Uma forma de encarar a vida e a morte jubilosamente, através do riso, da paródia, da ironia, uma maneira de regular a vida e a morte integradas no ciclo da natureza, num eterno desenrolar de um dia após o outro, como observou Sébastien Franck.
Na cena, todos estão envolvidos de alguma modo nesse rito de passagem que evoca, nos mínimos detalhes, inclusive através dos gestos do cotidiano, a Paixão de Cristo e a expectativa pascoalina: a adoração na igreja ao Senhor morto, os fiéis com as roupas escuras e o ar contrito, mas com ramos verdes nas mãos, o sacristão distribuíndo água benta, a colméia com a pequenina abelha na cabeça da Quaresma, que evoca com a sua presença, a ressurreição de Cristo (a abelha desaparece durante os três meses do inverno, símbolizando os três dias que Jesus permanece morto. A sua presença do lado de fora sugere a proximidade da ressurreição de Cristo). No canto à esquerda da cena podemos observar a presença de dois homens que jogam dados, um deles caracterizado como soldado romano; uma alusão, sem dúvida, aos soldados que, após a crucificação de Jesus, disputaram nos dados (um dos símbolos(32) da Paixão de Cristo) a posse da sua túnica, cumprindo a profecia das Escrituras: repartiram entre si as minhas roupas/ sortearam as minhas vestes. Foi o que fizeram os soldados (Jo, 19;23); a pequena carta de baralho (visível no primeiro plano da gravura) representa um cinco de paus e sugere alguns símbolos: as formas trilobadas são muito presentes na arte cristã e simbolizam, como a folha do trevo, a Santíssima Trindade. O "cinco"(33) simboliza a evolução biológica e espiritual do Homem, do universo, da perfeição; segundo Santa Hildegarde de Bingen, é o símbolo do homem.
Assim também os alimentos ingeridos na quaresma são símbolos da Paixão, como a presença do Carnaval com o porco no espeto evoca as festividades do Natal ou da Páscoa já que este é um animal sacrificado no Natal ou no fim da quaresma, nas festas do santo-porco: esse animal é associado a Santo Antônio, que teria, de acordo com a lenda, vencido o demônio. A mulher que limpa os vidros seria, possivelmente, um símbolo da reminiscência de uma tradição da limpeza ritual que se fazia nas casas antes da páscoa judaica para livrá-la de qualquer impureza. Segundo a tradição judaica, um dia antes da Páscoa, a casa deveria ser limpa de qualquer migalha de levedo(34), por menor que essa fosse; o fogo, que alí é utilizado por uma mulher para preparar um alimento com os ovos, pode sugerir também o "Fogo Novo"(35), rito da liturgia cristã celebrado na vígilia da Páscoa (sábado de aleluia). E será casual que as achas e a fumaça do braseiro insinuem a forma de uma cruz? Como os ovos, necessário ao alimento que é preparado, mas também um símbolo tradicional na Páscoa. Segundo Mircea Eliade, o ovo, é universalmente, um símbolo do "renascimento", da "ressurreição"(36); as duas pequenas tochas (podem aludir a um costume usual ao "shabat" judaico) no alto de uma vara carregada pela pequena e grotesca figura mascarada; ou ainda, a vela que é levada atrás do Carnaval e que pode sugerir o período pascoalino e a ressurreição de Cristo; as farsas burlescas, os pedintes, os cortejos, a presença do poço com os peixes frescos ao lado (o peixe, segundo o Evangelho de Lucas, 24;42, foi o alimento que Cristo comeu após a ressurreição), as verduras verdes (sinal de que o inverno acabou) na cesta colocada nas proximidades do poço. Tudo tem uma razão de ser. No canto direito do quadro, oposto a aquele onde os soldados jogam os dados, está uma criança, alusão, talvez, ao presépio do menino Jesus e à uma "vida nova". Uma suposição que parece reiterada pelos presença de homens ofertando um óbulo (evocação dos reis magos?). Ainda, os lençois brancos amontoados podem sugerir a passagem bíblica da visita dos apóstolos ao sepulcro de Cristo no momento anterior à sua ressurreição:
Pedro saiu, então, com outro díscipulo, e se dirigiram ao sepulcro.../ e entrou no sepulcro (que já estava vazio); vê os panos de linho por terra e o sudário enrolado.../ porque conforme a Escritura, ele devia ressuscitar dos mortos .(Jo 20,3-10; Lc 24, 12)
E o que dizer da insólita figura do louco caminhando...?
Gravura 7BRUEGEL, Peter (o velho). "Le Combat de Carnaval...", in Tout l'oeuvre peint de Bruegel l'ancien.Paris : Flammarion, 1981. Detalhe: Figura do louco: centro da gravura.
Ao centro da gravura, exatamente no centro, uma figura solitária caminha, indiferente à agitacão e ao burburinho febril que toma conta de toda a praça. Voltando as costas às figuras do Carnaval e da Quaresma, essa criatura pode ser identificada pela extravagância de seu traje, pelas suas cores alegres e brilhantes: é o louco. Sua indumentária é vermelha de um lado, enquanto, do outro, é listrada de azul e amarelo-ouro; na cabeça, o capuz com as grandes orelhas terminadas em guizos, e, nas mãos, o cetro encimado pela insígnia da loucura: uma cabeça com longas orelhas de asno, guizos e fitas. O louco, na gravura de Bruegel, aparece sozinho, ao contrário do que sucedia costumeiramente nas ocasiões festivas, quando os loucos reuniam-se em grandes chusmas e ocupavam a praça e as ruas vizinhas, fazendo enorme alarido, uma doida gritaria, como os descreve Sebastian Brant: eis o que os loucos entendem por bem viver, uivar como lobos e fazer grande algazarra com os labregos(37). Caracterizavam-se pela irreverência, imitando ou ridicularizando pessoas, fazendo gestos grosseiros ou obscenos, mostravam os traseiros, estiravam as línguas, gargalhavam ruidosamente, desrespeitavam as hierarquias, invadiam ruas e casas. Essas eram as atitudes usuais do louco durante festejos conhecidos como a Festa dos Loucos, ou Festa dos Inocentes, ou do Asno. Surgiam, às vezes, com trajes esfarrapados, sendo seguidos por um cão, levavam um cetro dourado ou uma balão branco na ponta de uma vara e constituiam-se em objeto de zombaria de uns, de reverência de outros.
No quadro de Bruegel, a figura do louco parece-nos emblemática: colocado no centro da gravura, isolado, sem os gestos que o caracterizam; ao contrário, ele caminha tranqüilo, aparentemente alheio ao que o rodeia. Tendo em vista, principalmente, o lugar que o louco ocupa no imaginário do homem europeu nos séculos XV-XVI, não nos parece casual a sua presença no centro da cena. O que significa o louco? Quem é o louco que ocupa o centro da praça na qual se celebra o resgate do Homem pelo sangue de Cristo sacrificado na cruz? Quem é esse que se encontra nessa praça transmutada pelo caráter mítico da festa onde se reatualiza o "tempo forte", o tempo original da criação do mundo?
De acordo com Eliade(38), o Homem tem sempre que, necessariamente, encontrar um referencial, um ponto fixo cuja existência pressupõe a criação do mundo, porque a determinação do centro, ou melhor, a sua construção, é, como diz Eliade, uma cosmogonia, momento no qual o Homem original definiu um local e um tempo, o "illo tempore". O local da criação do mundo é o centro do mundo, o "cosmos" que se opõe ao espaço externo ou ao "outro"mundo, o "caos". Para o "homus religiosus", o centro, o lugar da criação, é o ponto fixo a partir do qual todo espaço será orientado. O centro é a zona do sagrado por excelência, a realidade absoluta. Como todos os símbolos da realidade, o arquétipo do centro está presente, insistentemente, sob as mais diversas formas. Como diz Durand(39), é, antes de tudo, refúgio, receptáculo geográfico. Pode estar situado em uma montanha, mas em sua essência implica em abóboda, caverna, "templum" ou, como sugere Gusdorf(40), umbigo mítico do mundo ("o omphalos"), como os judeus designariam a Jerusalém e ao Gólgota, sucedâneos, aqui na terra, do Paraíso. Para o homem cristão, o centro do mundo foi localizado por Yahweh no Oriente, onde teria colocado o Homem que modelara à sua imagem e a Àrvore da Vida, o "axis mundi", ponto de encontro entre o céu, terra e inferno, meio de comunicação entre Deus e os homens. Local, onde segundo o texto de origem síria, A Caverna dos Tesouros, Adão teria sido criado, ou seja, o centro da terra. O mesmo lugar onde, mais tarde se ergueria a cruz de Jesus, cujo sangue derramado resgataria o Homem. A cruz remete, naturalmente, à árvore cósmica, cujas raízes penetram no inferno, enquanto seus galhos alcaançam o céu. Eliade menciona, à exaustão, inumeráveis exemplos, na história das religiões, da existência do seu simbolismo, que reaparece, surpreendentemente, sob formas geomânticas, arquiteturais ou iconográficas, como o mandala ou o labirinto. Eliade aponta a ambivalência do centro, ou seja, a sua capacidade de se manifestar sob planos múltiplos, como uma característica do centro em geral. E é fácil compreender porque todo ser humano tende a caminhar em direção ao centro que lhe confere, integralmente, a sacralidade, o absoluto. Embora, diz ainda esse autor, exista uma contradição - a dificuldade de se penetrar no centro. Sem dúvida, é uma ambigüidade, mas o que importa é demonstrar que o homem só pode viver em um espaço sagrado: o centro. Ele cita como exemplo a lenda de Perlesvaus e o seu encontro com o rei Pêcheur, o guardião do segredo do Santo Graal que padecia de uma doença misteriosa, incurável(41). É uma novela que se inicia com o nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Estas três pessoas são uma só substância e essa substância é Deus, e de Deus procede o alto conto do Graal. É uma novela do ciclo arturiano, "matéria de Bretanha", que narra a busca do Santo Graal, objetivo da saga de Perlesvaus. O seu cenário é um bosque labiríntico, escuro, tenebroso, onde o cavaleiro se enreda como em peregrinação dolorosa. Labirinto evocador dos labirintos medievais representados nos pisos das igrejas - símbolo dos obstáculos necessários para que o homem alcance a salvação - oferece as condições a Perlesvaus para que encontre o centro, o Graal localizado no castelo (do rei Pêcheur) cuja claridade e resplendor contrasta com o bosque escuro por onde ele peregrinara como, aquele que perdeu os vales, ou seja a própria imagem do homem cristão que perdera o Paraíso por sua indiferença diante da imortalidade. Ao chegar, Perlesvaus pergunta ao rei: onde está o Graal? Instantaneamente, não só o rei se recupera, mas as fontes e os rios começam a correr, a vegetação reverdesce e o castelo em ruínas é milagrosamente restaurado. Simples palavras, mas suficientes para restaurar a natureza inteira. Estas palavras constituem a questão central, que interessava não ao apenas rei, mas a todo Cosmos. Este era o âmago da questão: onde se encontrava o sagrado, o real, o centro da vida, a imortalidade? O que representa o Graal? Segundo a lenda, o Graal é o cálice onde se recolheu o sangue oriundo das chagas de Cristo, a bebida da imortalidade, porque o sangue é universalmente considerado como o veículo da vida e, no sentido bíblico, o veículo da alma. E, sobretudo, representa a aliança com Deus: Bebei dele todos, pois isto é o meu sangue, o sangue da Aliança que é derramado por Cristo para remissão dos pecados do Homem (Mt. 26,28; Ex. 24,8).
O mais significativo aspecto desse relato é a capacidade de transcendência demonstrada no simbolismo do centro que extrapola o "topus" de uma localização física, porque o essencial é o caráter do absoluto contido nesse signo. Assim ao se pronunciar Graal, remete-se ao sangue/Cristo/morte/vida/fogo/luz/origem/Verbo/Deus como a idéia central da criação do mundo, a palavra condutora através da qual a vida se regenera perpetuamente:
no princípio era o Verboe o verbo era Deus(Jo, 1-10).
É este, sem dúvida, o significado do episódio da conquista do Graal, o da regeneração do gênero humano. Como diz Eliade, neste relato se evidencia um aspecto menos conhecido do simbolismo do centro; a solidariedade entre a vida universal e a saúde do homem. Esta, uma metáfora, porque a saúde do corpo significa a saúde da alma. É esse o significado da Paixão de Cristo e da Páscoa cristã, a luta entre a Morte e a Vida Eterna, a regeneração do universo realizada simbolicamente no corpo e no sangue de Cristo. Homem, filho do homem, mas, como filho de Deus, colocado no centro do mundo - "axis mundi", microcosmos - porque, em sua essência material está composto dos quatro elementos do universo. E é esta razão porque o Filho do Homem pode assumir todo o universo, encarnando-se, porque o Homem é um resumo simbólico desse universo. E o mistério que o homem percebe na contemplação da natureza não é tanto do Cosmos em si, quanto o seu próprio mistério refletido no do Cosmos. A função original dos símbolos é precisamente esta revelação existencial do homem a si mesmo, através de uma experiência cosmológica que só é possível porque existem entre o Cosmos e o Homem, profundas correspondências(42). Como disse São Gregório Magno: o Homem é, de certa maneira a medida de todo as as coisas. Uma concepção expressa no Gênesis com a idéia de que o homem é feito à imagem de Deus: façamos o Homem à nossa imagem e à nossa semelhança...(Gn.1,26;2,7). Esta concepção do Gênesis fundamenta a idéia de que as relações do microcosmos (homem) e a do macrocosmos (não somente o universo, mas Deus como força criadora), - o conjunto Deus-universo-homem - possam ser simbolizadas por uma esfera, imagem tradicional do mundo, onde cada homem ocupa o centro(43). E é dessa forma que é retomada tal idéia no Renascimento, como por exemplo, em Pico de Mirandola no seu discurso Sobre a dignidade do Homem: o homem como centro do universo. Mas, diz Panofsky, essa concepção não significa uma ode ao paganismo. Muito pelo contrário, observa esse autor: Pico disse que Deus colocou o Homem no centro do universo para que pudesse ter consciência de seu lugar e assim ter liberdade para decidir aonde ir(44).
Panofsky observa que a concepção renascentista de "humanitas" tinha um aspecto duplo desde o início. O interesse no ser humano fundava-se tanto numa renovação da antítese clássica entre "humanitas"e "barbaritas"ou "feritas", quanto na aparição da antítese medieval entre "humanitas" e "divinitas". Porque, observa ainda Panofsky, ao definir, por exemplo, o homem como uma alma racional, participando do intelecto de Deus, mas operando num corpo, Marsílio Ficccino define-o como o único ser que é ao mesmo tempo autônomo e finito. E foi, diz Panofsky, dessa concepção ambivalente de "humanitas" que o humanismo surgiu: não tanto um movimento, mas uma atitude, que pode ser definida como a convicção da dignidade do homem, baseada, ao mesmo tempo, na insistência sobre os valores humanos - racionalidade e liberdade - e na aceitação das limitações humanas - falibilidade e fragilidade; e desses dois aspectos resultam, naturalmente, como conseqüência, a responsabilidade e a tolerância. Podemos, portanto, entender o significado e a importância do louco - figura insólita e emblemática - no centro desse espaço transmutado no "illo tempore", no "omphalos" mítico, onde se reatualiza a cosmogonização original. Porque a figura do louco é ambivalente, é uma figura bifronte; Robert Klein, em seu estudo "Le theme du fou et l'ironie humaniste" sublinha essa peculiaridade, ou seja, a ambivalência do louco: l'image du fou, équivoque comme tant de grands symboles et des projections collectives, est en tout état de cause un instrument d'autocomprehension(45). Porque o louco serve de espelho da humanidade, refletindo todos aspectos da alma humana, ao mesmo tempo que incarna o infra-humano. Como diz Klein, tanto o louco provoca o riso, como convida à meditação socrática, oferecendo-se aos mais lúcidos como espelho de sua verdadeira natureza: dans les deux cas__et dans d'autres, intermédiaires__cette figure de 'l'indignitas hominis', obsédante pour les contemporaines exacts de ceux qui avaient fait de la 'dignitas hominis' la pierre angulaire de leur philosophie, illustre et résume tout une antropologie qui fut, à la Renaissance, extrêmement actuell(46).
Durante a Idade Média, a figura do louco esteve presente, principalmente, em festejos ligados às festas litúrgicas, festas eclesiásticas de loucos, verdadeiros saturnais do clero quando os sub-diáconos ocupavam o lugar dos seus superiores, parodiavam salmos e o serviço divino, cantavam em falsete, faziam trocadilhos maliciosos e obscenos com as orações, usavam máscaras grotescas, fantasiavam-se de animais ou de mulheres, apresentavam-se nus ou introduziam na igreja, animais fantasiados como por exemplo, o asno, com as vestes de padre. Era a Festa do Asno, descrita em detalhes em um missal de Besançon que transcreve um ofício composto no século XIII por Pedro de Corbeil para a Festa dos Loucos e que parodiava, naturalmente, um ofício verdadeiro. O asno, com uma bela manta, era levado para a igreja com um cântico de regosijo absolutamente profano (Para longe o que é triste), primeiro, e depois o Conductus ad Tabulam(47), quando o burro era conduzido para o coro e passava-se a louvar o animal, cantar-lhes os serviços prestados e imitar-lhe os zurros. Nos intervalos todos saiam para libações e comiam à farta, assim como o próprio asno. Sébastien Brant descreve, em sua Nave dos Loucos, uma dessas festividades:
Ce qu'on dit ou écritest toujours empruntéà la boîte à malice;surtout quand les noceurstiennent leurs assemblées,c'est alors au cochonà sonner les Matinespour la première messe:l'âne chante la Primela Tierce, Saint Grobian.Les marchands de chiffonset de peaux de lapin,chantent alors la Sexteavec leur propre textecousu de fil grossierla troup de maraudss'assemble pour la Noneen braillant à tue-tête;ensuite le cochonagite la sonnettepour appeler aux Vêpres,Salaud et Chenapanse mettent à chanteren attendant Compliesoù l'on entonne en chouer:"Chantons la pomponnette !"Graisse d'âne poivréeet graisse de cochonpassent de main en main...(48)
A festa terminava com um cortejo na cidade, quando se entregavam a toda sorte de extravagâncias. Enfim, como a Festa do Asno, eram inúmeras as ocasiões de festas ligadas às cerimônias religiosas (Natal, Epifania, Páscoa, Pentecostes) nas quais os loucos tinham uma participação marcante: a Festa dos Excessos, como a das Garrafas em Evreux (Guillerme de Boutelle), a dos Inocentes, a das Crianças, a dos Diáconos, eram muitas das expressões como eram designadas tais diversões burlescas. O louco também era identificado com o anão, o bufão, o monstro ou o selvagem. Referimo-nos aqui, inicialmente, ao homem selvagem, representado na literatura e arte européias anteriores ao descobrimento da América. Uma imagem que, com o advento do Novo Mundo, seria utilizada como referencial para a "construção" da identidade do homem americano baseada em uma extensa etnografia imaginária e iconográfica sobre o homem selvagem. E tantos eram representados com aparência estranha, nus, peludos, portadores de perigosos e violentos costumes, (portando uma "maça" da qual teria derivado o cetro do louco), entregando-se a toda sorte de desvarios, como associados a uma visão utópica de selvagens edênicos vivendo em um mundo ideal. Esse selvagem é, muitas vezes, o protagonista de "gestas maravilhosas" como no relato de Guibert de Nogent (escritor medieval), segundo o qual teria havido, acompanhando a primeira Cruzada, uma tropa de loucos selvagens cujo objetivo era o de propagar terror entre os turcos que os denominavam de "thafurs", ou, de acordo com a tradução de Guibert(49), de "trudentes" (termo derivado do francês antigo, século XII, que designa amigo dos cristãos, mas também, mendigo, intrujão, enganador).
Foi, no entanto, nas festas ou nos bailes dos Selvagens que a sua imagem mais se difundiu na Europa, como por exemplo, no Bal des Ardents, festa na corte do rei Carlos VI de França, em 1392, quando os participantes da "dança do homem selvagem" tiveram os seus disfarces incendiados. Eram também comumente associados a folguedos, como o dos goliardos (espécie de clerezia marginal), que levavam vida dissipada e errante, entregues à uma liberdade animada por músicas e versos jocosos, jogos eróticos e muito desregramento na bebida e comida. Em uma das canções da "Carmina Burana" do século XIII há um brinde aos cavaleiros selvagens ("milites silvani") que, usualmente, tomavam parte em grandes festejos, como na ocasião da coroação de Afonso IV de Aragão em 1328. Também estavam presentes com muita freqüência em festejos que celebravam o fim do inverno, ou nos ritos de fertilidade no inicio da primavera, como aparecem representados no quadro de Brueghel (ver gravura relativa à Querela do Urso e Valentim acima).
Para a Idade Média, segundo Bernheim, selvageria e loucura eram termos quase intermutáveis(50). Os exemplos são inúmeros: em um relato medieval do século XII, como em Yvain ou le chevalier du lion, essas imagens se superpõem claramente. Yvain, tendo transgredido certas condições, perde o amor de Laudine. Desesperado e delirante foge para a floresta. Le Goff observa que reconhece-se na loucura de Yvain, o "topos" do homem selvagem: perdido dentro da floresta, despojado da roupa, da memória, da cultura, ou seja, dos hábitos "civilizados" (alimentação, moradia, vestuário, etc,) reúne as imagens do louco e do selvagem. Também é essa a imagem no célebre episódio da Vita Merlim (1148-1149), um texto de Godofredo de Monmouth que deriva de tradições célticas muito antigas. Merlim, sentindo-se responsável por uma batalha que provocara a morte de seus dois irmãos, enlouquecido, interna-se nos bosques. Leva uma vida miserável, selvática, através da qual, no entanto, acabará por experimentar o seu poder profético. Nesses dois casos citados, a loucura foi passageira, ambos recuperaram a razão e voltaram à vida anterior. De fato, distinguia-se a loucura verdadeira, a do alienado ou do débil mental, da loucura voluntária. Robet Klein cita, inclusive, uma gravura, a de Burgkmair (Triomphe de Maximilien), onde há uma carro com os loucos naturais, seguido de outro com os "schalknarren" ou loucos voluntários. Uma distinção que já havia sido feita por Platão(51), ao denominar como "loucura boa", aquela que não era doença, nem perdição, e que podia ser entendida, nesse caso, como inspiração ou dom divino, ou como amor à vida, tendência a vivê-la com simplicidade. Platão diz mesmo, que os maiores bens ao homem ofertados são propiciados pela loucura (Fedro 244a), que como um dom divino, manifesta-se sob quatro formas: a amorosa (despertada pela lembrança da beleza ideal); a poética (inspirada nas musas); a purificadora (permite afastar os males); a profética (dom de adivinhação). Essa seria a forma manifestada no caso de Merlim, que durante o seu período de loucura teria recebido um "dom profético". É interesante também, analisar essa ambivalência ou ambigüidade da figura do louco através da sua identificação com outras imagens, como a do clown, do bufão, e do mat (carta do Tarot que representa o louco e cujo nome em francês medieval significa abater, humilhar) que tem características em comum. O mat(52), por exemplo, é a mais inquietante e misteriosa carta do Tarot, não tem número, ou o seu número é o "zero" ou o "vinte e dois"(53). Este último significando no simbolismo numerológico, "aquele que está além da palavra", o saber último que se afasta da ignorância, que se desliga de tudo a fim de caminhar, ir adiante, enquanto que o "zero" tem todas as potencialidade, porque pode anular ou valorizar as outras cartas. Reúne a significação iniciática do louco ou do mat (cuja indumentária é semelhante à do louco), presente, do mesmo modo, na figura do bufão cujo nome deriva do irlandês (em alguns textos irlandeses, o bufão tem uma relação homônima com druída) e significa a dualidade de cada ser. Ele é a outra face da realidade: expressa em tom grave a consciência irônica, ridiculariza a autoridade. Mas, para além de sua aparência cômica, percebe-se a consciência dilacerada. Ele é como um duplo de si mesmo, é um fator de equilíbrio, sobretudo quando ele se desequilibra, porque essa situação o obriga a buscar a harmonia interior, resultando em um nível de integração superior. Ele não é simplesmente um personagem cômico, mas a expressão da multiplicidade íntima da pessoa e de suas contradições ocultas. Muitas vezes ele serve de "bode expiatório", ou seja, aquele sobre o qual se lançam as culpas alheias(54). Com ele, também, relaciona-se o clown(55), que é tradicionalmente a figura do rei assassinado, sacrificado. Simboliza a inversão das poderes reais. É como o reverso da medalha, toda a magestade é substituída pela irreverência: à soberania opõe-se a ausência de toda a autoridade, ao temor, o riso; à vitória, a derrota; aos golpes dados, os golpes recebidos; às cerimônias mais sagradas, o rídiculo; à morte, a zombaria.
O louco conjuga em sí todas essas características, tornando-se por excelência o símbolo do homem idealizado pelos neo-platonistas, o hermeneuta inspirado da Criação, o Ser livre e lúcido, depositário de todas as verdades fundamentais e capaz de manifestá-las. E, do outro lado, o homem cego por seus desejos e tão louco que considera como loucos todos aqueles que são menos do que ele. Como observa Klein, é preciso reconhecer na figura do louco uma ambivalence en quelque sorte constitutionnelle: il est à la fois stupide et sage, esclave de ses instintes et spectateur de sa proprie conduite. Isso explica, diz ainda esse autor, por que os homens do Renascimento, e, em particular, os dos países do Norte europeu, entre 1450 e 1550, reservaram ao louco um papel de destaque e concevaient si volontiers la situation de l'homme dans le monde, ou de l'âme dans le corps, sous le jour essentiellement comique d'une "histoire des fous"(56). E como dizia Sébastien Brant na Nave dos Loucos, o mundo inteiro é louco:
car une seule nefne suffirait jamaisà les entasser tous,tant sont nombreux les fous.(57)
Gravura 8BRANT, Sébastien. La Nef des Fouds (ed. original, Bâle, 1494).Strasbourg, La Nuée Bleue, 1977 (gravura extraída do cap. CVIII, p. 143).
E cada louco tem por nome Chascun, Elckerlijk, Everyman, Jederman, ou seja, a nossa humanidade comum, símbolo da própria humanidade de Adão. A imagem, como observou, Klein, do homem plus qu'à demi enlisé dans une fange où il se complaît, mais luttant désespérément, avec ce qui lui reste de lucidité, pour se dégager et pour garder son contrôle(58). E é nesse sentido que nos parece muito sugestiva a imagem do louco colocada no centro da gravura de Brueghel. A sua analogia com a humanidade de Adão, leva-nos, naturalmente, à analogia com a própria figura de Cristo crucificado, que, embora, não representada no quadro, está sugerida através do próprio tema O Combate do Caranval com a Quaresma e de todos os símbolos da Paixão e Ressurreição aí presentes. A própria analogia do louco com a figura do clown - o rei sacrificado, assassinado - aproxima-o de Cristo.
A relevância da situação espacial do louco - a do centro - é valorizada, não só por recursos pictóricos utilizados por Brueghel, como o verde da relva que aí parece brotar e pela luminosidade que se irradia desse trecho da cena colocando-a em destaque, mas, sobretudo, pela representação unitária da sua figura e pelo comedimento de sua postura. A imagem do louco aí colocada transcende o seu "topus" habitual, não apenas por seu caráter de isolamento, mas também pela ausência do "gesticulatio" que lhe é peculiar. Jean Claude Schimitt(59) em seus estudos sobre os "gestos" assinala a diferença entre os termos "gestus" e "gesticulatio" e a conotação negativa desse último. Temos que guardam a mesma proporção que a já assinalada entre "risus" e "cachinatio". O louco, embora caminhando de costas para o observador, acha-se destituído de qualquer conotação negativa. Garnier observa a freqüencia com que o louco é representado nessa posição, e, geralmente, nesses casos, toda a sua figura se caracteriza por um "gesticulatio" agressivo, desordenado, o traje descomposto, esfarrapado, deixando entrever partes desnudas do corpo e, sobretudo, ao caminhar, volta-se com a cabeça torcida para trás, olhando amedrontado por sobre os ombros, como se fugisse por ter cometido algum delito. Sugere a saída à sorrelfa, e é a própria imagem da felonia, da traição. Sua representação na iconografia é extremamente comum, como a da gravura de Sébastien Brant relativa ao capítulo VII de sua obra (ver em anexo). Mas, como assinalou Garnier, a representação de um personagem em marcha pode ter uma conotação positiva, uma significação simbólica diferente e qui se situe uniquement au niveau du fait du conscience. Cette position traduit alors une intensité, une attention, une aplication, comme si l'empressement intellectuel, moral ou affectif s'exprimait par ce mouvement physique(60). Há, de fato, diz ainda esse autor, um desejo de valorizar, de sublinhar, le caractére intentionnel et volontaire da la démarche. O louco de Bruegel, ao contrário do seu desregramento habitual, distingüi-se pela moderação, e a sua imagem aproxima-se muito mais do exemplo mencionado por Garnier, ao citar a passagem bíblica (Eph. 6,14-18) referente ao cristão que tem uma missão, um objetivo a atender, e que se coloca em marcha com o escudo da Fé e a espada do Espírito. Uma imagem compatível com a do louco que caminha com o seu cetro em posição quase vertical, compondo uma linha ascendente. O cetro, como a própria figura do louco, é ambivalente: é geralmente símbolo de poder, de força, de comando. Sugere o significado da alma transfigurada pelo Espírito Divino, e, por ser um símbolo axial, é, também, a prefiguração da cruz redentora, portanto, de acordo com o contexto da gravura de Bruegel, o da Paixão e Ressurreição de Cristo. Mas, por outro lado, o cetro do louco é, naturalmente, a insígnia do seu poder, o emblema do reinado da loucura, símbolo da inversão e da violência por sua analogia com a "maça" do selvagem, mas que não obstante, também, nos conduz, à árvore da vida, ao "axis mundi". A imagem simbólica da "árvore da vida" associada ao louco ou ao selvagem (esse, como vimos, constitui figura análoga à do louco), é freqüente na iconografia medieval e na dos séculos XV e XVI; uma ilustração de um festival do século XV, em Schembart, na Alemanha, mostra-nos um gigantesco homem selvagem carregando em seus ombros uma árvore imensa em cujo tronco acha-se agarrado um homenzinho "liliputiano". Imagem tão significativa quanto esta é a de uma obra de Bosch que representa um barco repleto de "pecadores", a Nave dos Loucos cujo mastro é uma árvore, na qual em um dos seus galhos, senta-se o louco. Uma metáfora, parece-nos evidente, da "queda" do Homem e da árvore da vida no Paraíso Terreal. O cetro reúne, em uma só imagem, os dois significados extremos de sua significação maior que é a árvore da vida; símbolo das relações que se estabelecem entre o Céu e a Terra, que nos leva à antiga imagem da árvore cósmica ou "axis mundi", instrumento da "queda" do homem, de suplício, mas também de redenção. É o próprio Cosmos recriado simbolizando essa união entre o Visível e o Invisível, a vida que vem do Céu e penetra na Terra: por metomínia, é o próprio Cristo, ele mesmo que se torna árvore do mundo, eixo, escada para o Céu. E, como "árvore da vida", tem analogia com a capacidade de mutação do ser humano; está ligada à idéia de regeneração do vegetal, morrem as folhas e tornam a nascer. Assim, também o ser humano, que morreu ao pecar, pode, como a árvore, renascer como homem cristão.
Desse modo, o cetro confirma a situação espacial do louco - a do centro - e a sua potencialidade simbólica que é, ainda, valorizada por todo o seu entorno; porque, se o louco representa o centro crítico, o ponto sobrecarregado de maior tensão, o lugar decisivo, também, pela própria capacidade de transcendência demonstrada no simbolismo do centro, se estabelece uma relação de reciprocidade com tudo que lhe está próximo. Porque, se este se irradia, transcendendo o seu próprio "topus" físico, transborda e invade todo o seu entorno, também esse espaço que o cerca, através dos signos aí representados participa de toda a capacidade simbólica que se irradia desse centro crítico, e reforça a sua imagem de um microcosmos contendo em sí mesmo todas as virtualidades do universo. Desse modo, os signos aí representados partilham ou comunicam ao louco o seu próprio poder simbólico: do lado esquerdo, por exemplo, os mendigos, os aleijados, os leprosos, e adiante o selvagem (na farsa do Urso e Valentim), constituem uma metáfora da fragilidade, da degradação moral e física do ser humano, dos seus vícios e fraquezas e que correspondem à uma das faces do louco, a essa figura, como disse Klein, cuja ambivalence en quelque sorte est constitutionnelle, expressa, inclusive, nas cores de sua própria indumentária, dividida, verticalmente: vermelha de um lado e listrada de amarelo-ouro, do outro. É a figura do "indignitas hominis" (uma imagem iconográfica da obra de Brant, como a gravura em anexo) que se encontra meio que afundado, como observou Klein, dans une fange, mas que luta, desesperadamente para escapar e recuperar sua outra face, a do "dignitas hominis": uma face que emerge, enfatizada através dos outros signos que sugerem a ressurreição, a possibilidade de renovação do ser humano, como os ovos, o "fogo novo", os peixes e, ainda, a lanterna carregada pelo homem de preto. A lanterna, no simbolismo cristão ocidental está ligada ao culto dos mortos. A lanterna dos mortos brilha a noite toda colocada ao lado do defunto ou diante da casa. Simboliza a imortalidade da alma que transcende o corpo perecível. A lanterna já apagada que é levada pela figura de preto poderia, talvez, significar que a ressurreição já se realizara. Uma suposição que é reiterada pela presença dos inúmeros símbolos já mencionados e inclusive dos peixes cujo nome em grego - ICHTUS - é um ideograma de Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador. O peixe, como vimos, teria sido o alimento ingerido por Cristo após a ressurreição. Também o poço tem um peso simbólico expressivo, representa uma via de comunicação entre a terra e o céu e, inclusive, com a vida do além-túmulo. Síntese das tres ordens cósmicas (céu, terra e inferno) e dos elementos (água, terra e ar), o poço é também, como o Homem, um microcosmo. Entre os hebreus é o signo da abundância, a fonte da vida, como o poço de Jacó, junto ao qual Jesus encontrou a Samaritana. Tem o sentido de água viva, borbulhante, bebida da vida e do saber, tal como a fonte. Mas, ao mesmo tempo, é a imagem do abismo, das profundezas... Gilbert Durand cita uma imagem poética de Vitor Hugo como a mais precisa definição de poço: chose inouïe, c'est au dedans de soi qu'il faut regarder le dehors. Le profond miroir sombre est audedans de l'homme. Là est clair-obscur terrible... En nous penchant sur ce puits nous y apercevons à une distance d'abime, dans un cercle étroit, le monde immense... le puits est un microcosme; mais le puits, c'est l'homme(61). Esta é a imagem do homem renascentista, o homem como um microcosmos no centro do universo, imagem, sem dúvida, solidária à do louco, e à do próprio Cristo. Porque o louco, como já dissemos, conjuga em si essa multiplicidade de faces. E poderíamos supor, diante do que já expusemos até aqui, a sua homologia com Cristo através das suas própias características: reúne a significação iniciática do mat, daquele que está além do limite da palavra, do saber último, que marca o fim de um ciclo completo, terminado, e do início de um outro que vai começar, que é capaz de se desligar de tudo que é terreno, mesquinho, para ir adiante, para "além das cidades dos homens", de transcender enfim, a sua condição humana e limitada; ou ainda, daquele que - simbolizado na figura do bufão - conjuga as contradições íntimas de cada ser e, sobretudo, a capacidade de sofrer em si as culpas alheias (a figura conhecida como o "bode expiatório"), como Cristo, que se deixou sacrificar para resgatar a humanidade em pecado. Também a identificação do louco com o "clown", aproxima-o da imagem de Cristo, já que o "clown" é, como vimos, a figura do deus assassinado, imolado, mas cujo sacrifício é indispensável para a manutenção do poder divino, (como demonstra Frazer no Ramo de Ouro). Assim, o sacrifício de Cristo, que morreu para resgatar a vida eterna do Homem e que, ao fazê-lo, assegurou também a continuidade do poder da salvação no seu próprio renascimento.
Gravura 9BRUEGEL, Peter (o velho). "Le Combat de Carnaval...", in Tout l'oeuvre peint de Bruegel l'ancien.Paris : Flammarion, 1981. Detalhe: Figura do louco e do poço com os peixes: centro da gravura.
Esta homologia que pensamos existir entre o homem autônomo e finito - idealizado pelo humanismo renascentista - , o louco da gravura de Bruegel e a figura de Cristo, parece-nos ser uma suposição bastante procedente e que encontra apoio em textos da época, como por exemplo, em Holbein (artista alemão que viveu entre 1498 e 1534) que desenhou a figura de Cristo com o toucado de louco(62) às margens do Encomium Moriae (1505) em um trecho da obra que relaciona cristianismo, loucura, platonismo e morte:
O sistema do cristianismo, acerca da felicidade da vida, muito se avizinha do dos platônicos. Segundo o princípio fundamental desses dois sistemas, a alma está encarcerada no corpo, ligada pelos nós da matéria e de tal modo oprimida pelo peso da máquina orgânica que muito dificilmente pode descobrir e apreciar a verdade. É por essa razão que Platão definiu a filosofia como sendo a meditação da morte, porque tanto a filosofia como a morte destacam nossa alma das coisas visíveis e corporais. Por isso, quando a alma emprega os órgãos de acordo com a economia natural, costuma dizer-se sábia e sã; mas quando, rompendo os liames, procura fugir do cárcere, pôr-se em liberdade, então se diz em estado de loucura. Quando...provém da doença, dão-lhe o nome de furor. Por outro lado, vemos esses felicíssimos loucos que predizem o futuro, que conhecem línguas e ciências sem nunca as terem aprendido, e que mostram em sí mesmos algo de divino. E de onde provém esse prodígio? Creio não haver dúvida de que provém da alma, que tornando-se mais livre da servidão do corpo, começa a utilizar sua força natural(63).
Esses liames estreitos entre os temas da Morte, da Humanidade (simbolizada em Cristo/Adão), e da loucura não emergem apenas nas obras de Bruegel, Erasmo ou Holbein, mas encontram respaldo na riquíssima produção literária, artistíca e filosófica dos séculos XV e XVI. A relação da morte com a loucura já é mencionada no início do século XV: E. Mâle cita, por exemplo, que no ano de 1424 fez-se uma dansa dos loucos nos cemitérios dos Inocentes em Paris. A morte aparece mesmo, inúmeras vezes, vestida com a indumentária do louco, como na Dansa Macabra da Biblioteca de Heidelberg (impressa em 1465) de Holbein ou na de Israel van Mencken (ver gravura em anexo); no Triunfo da Morte de Bruegel ela aparece com a indumentária de Louco em várias cenas. Ainda em Holbein, o louco segue dócil e beatíficamente o esqueleto que o vem buscar. São inúmeras as obras que se dedicam a esses temas, tendo a loucura, ou o louco como instrumento de reflexão em torno da morte e do próprio Cristo.
Gravura 10BRANT, Sébastien. La Nef des Fouds (ed. original, Bâle, 1494).Strasbourg, La Nuée Bleue, 1977 (gravura extraída do cap.LXXXVI, p. 338).
A loucura se prestará excelentemente aos ideais do humanismo cristão, que aspira a esclarecer os homens sobre a verdadeira piedade, ou a purificar a Fé e prepará-lo para a "outra" vida; a grande divulgação dos "Ars Moriendi" nos séculos XV-XVI atesta essa preocupação fundamental do homem renascentista. Tudo convida, incita ao homem a meditar sobre a morte. Klein cita um diálogo popular entre Salomon e Marcoul que termina assim:
Por ce het chascun mortQue nus n'i a déportCe dit SalemonsQui se sent vil e ortDe voloir vivre a tortMarcoul li respont.(64)
E qual o cristão sincero, observa Klein, que no século XV, não se sentiria "vil et ort" (sujo)? Quem, então, não se sentiria aterrorizado diante da perspectiva da morte e da condenação eterna? o homem medieval cristão viveu obsecado pela culpa, pelo desejo de recuperar a condição divina, a condição anterior à "queda". Este homem, esmagado pela nostalgia do Paraíso Terreal, se estrutura a partir da "queda", vive à sombra do pecado. Expulso do seu "locus amoenus", é um exilado, um estrangeiro em um mundo que se apresenta como um mistério insondável, uma selva escura, uma intrincada teia labiríntica em cuja trilhas sinuosas o "outro", o demônio, o espreita incessantemente para arrastá-lo à perdição eterna.
Segundo Ariés(65), até o século XII não havia julgamento nem condenação. Aqueles que haviam pertencido à Igreja ou eram excepcionalmente piedosos se reintegrariam a Deus no Paraíso, enquanto os maus não ressuscitariam mais, não teriam mais existência real. Assim, toda uma população de santos tinha assegurada uma sobrevivência gloriosa após um longo sono. A partir do século XII, porém, essa relação com a morte sofre uma profunda transformação, como também, o espaço do sagrado que inclui um novo "locus", o Purgatório. Inicialmente inspirada no Apocalipse, a iconografia do Último Julgamento vai sendo cada vez mais influenciada pelo Evangelho de São Mateus (Mt. 25, 31-46), onde se enfatiza o julgamento dos bons e dos maus, a pesagem das almas feita por São Miguel e a ressurreição dos mortos. Um tema que será obsessivamente representado não só em altares, tímpanos, tetos de catedrais, obras religiosas mas, até mesmo, na cosmografia medieval.
Gravura 11BRANT, Sébastien. La Nef des Fouds (ed. original, Bâle, 1494).Strasbourg, La Nuée Bleue, 1977 (gravura extraída do cap. LXXXV, p. 330.).
A idéia desse julgamento(66) implicava em uma corte de justiça, cujo centro era, naturalmente, Cristo sentado em seu trono de glória, cercado de todos os anjos. Aí, nesse tribunal, cada um era julgado segundo suas ações - boas ou más - escrupulosamente pesadas na balança de São Miguel. No final da Idade Média, foi se tornando cada vez mais freqüente esse julgamento individual. No Albi - um grande afresco dos fins do século XV e início do XVI que representa o Juízo Final - , cada ressuscitado leva em seu pescoço, à maneira de identidade, uma placa onde estavam anotadas as suas ações, e que deveria ser apresentada às portas da eternidade. Tornar-se-á comum, no entanto, nos "Ars moriendi" a representação do Juízo Final, não mais no fim dos tempos, mas no quarto do moribundo. Uma cena que a iconografia dos "Ars Moriendi" tornará extremamente conhecida: o moribundo, nas vascas da agonia, cercado dos familiares que lhes assistem nos últimos ritos indispensáveis à sua "passagem"; mas não só os viventes o cercam, também seres sobrenaturais invadem o quarto para assistí-lo nos momentos finais, colocando-se à cabeceira do agonizante. De um lado, a Santíssima Trindade, a Virgem ou a corte angelical, do outro, Satanás, muitas vezes cercado por demônios medonhos. Trava-se, então, um combate cósmico, duas facções opostas, o Bem e o Mal a disputarem a alma do infeliz, submetendo-o a uma prova final, a última tentação; sua própria vida lhe é apresentada em retrospectiva, como em um livro, e ele será tentado, ou pelo desespero de sua faltas, ou pela glória vã de suas ações meritórias, ou ainda, pelo amor excessivo aos afetos a aos bens terrenos. De sua atitude, nesse breve instante, dependerá o perdão de seus pecados ou a anulação de suas boas ações. Essa prova, que significa uma oportunidade de salvação apresentada ao homem em seu derradeiro momento de vida, substituía o Juízo Final.
Diante dessa "cenografia" aterrorizante e a perspectiva pavorosa de queimar no fogo eterno, o homem busca desesperado o auxílio da Virgem, dos santos, agarra-se às relíquias, incentiva as peregrinações, os sacrificios, multiplica as missas, as orações, as promessas, as esmolas...Mas essa atitude é, sem dúvida, também a comprovação da emergência de uma aguda consciência do pecado, e, sobretudo, da responsabilidade individual do ser humano em relação às próprias fraquezas e culpas. A promoção do indivíduo e o sentimento da culpabilidade individual, foram, como observou Delumeau, duas realidades inseparáveis e peculiares à mentalidade ocidental da época do Renascimento. E, no âmbito dessa angústia dilacerante, quando o homem se interroga sobre sua liberdade individual, a loucura representa, pela sua ambivalência, pelo seu caráter libertário, a possibilidade de reflexão. Torna-se o espírito crítico da razão que através da ironia troça de si mesmo. Se o louco reflete em si todos os pecados do mundo, convida, por outro lado, à reflexão sobre si mesmo, porque a cura da loucura se dá pelo auto-conhecimento. E é por esse motivo que é tão comum a imagem do louco refletindo-se no espelho, que, como o Elck de Bruegel, ao se contemplar, observa: eu ignoro a mim mesmo. Ou ainda, o Jeannot Bourricot (nome de personagem popular que significa pequeno asno) de Brant, que, ao contrário, se reconhece no espelho:
Sans oublier jamaisla bouillie pour les fous,je tiens à mon miroircar je suis bien le frèrede Jeannot Bourricotet les oreilles d'ânesont marque de famille.(67)
Gravura 12BRANT, Sébastien. La Nef des Fouds (ed. original, Bâle, 1494).Strasbourg, La Nuée Bleue, 1977 (gravura extraída do cap. LX, p.217).
Espelhos e lunetas são, como mencionou Klein, desde Eulenspiegel, os atributos constantes do louco, e, muitas vezes, ele mesmo os oferece em venda, seguindo sua função de ironista. Essa analogia do espelho com a loucura é tão freqüente pelo simbolismo que ambos encerram; se o louco é uma figura ambivalente, bifronte, constituindo-se como espaço de auto-reflexão, o espelho é o instrumento de Psyché e reflete a alma, não somente seu aspecto belo, mas o seu lado mais tenebroso. Essa é a noção neo-platônica das duas faces da alma: um lado inferior voltado para o aspecto corporal, enquanto o outro, o lado claro, voltado para o espírito, para a inteligência. E, em virtude da teoria do microcosmos como imagem do macrocosmos, o homem e o universo estão na posição respectiva de dois espelhos. Do mesmo modo que as essências individuais se refletem no Ser Divino, o Ser Divino se reflete nas essências individuais. Assim é o louco: ao mesmo tempo que é a imagem do "outro", daquele que causa estranheza, é a imagem daquele que reflete a imagem oposta.. Essa ambigüidade da "stultitia" identificando o louco com o homem comum, e, ao mesmo tempo, com o "outro", o monstro, o receptáculo de todos os vícios e torpezas, é, provavelmente, o motivo da excepcional divulgação da imagem do louco: porque é a partir da identificação do "outro" que se pode ter consciência do próprio "eu", do mesmo modo que o "outro" só é identificado quando o "sujeito" tem a percepção da sua individualidade, estabelecendo-se, assim, uma relação de alteridade entre o "sujeito" e o "outro".
Gravura 13BRANT, Sébastien. La Nef des Fouds (ed. original, Bâle, 1494).Strasbourg, La Nuée Bleue, 1977 (gravura extraída do cap.V, p. 21.).
Podemos concluir que a imagem do louco colocada no centro d' O Combate do Carnaval com a Quaresma revela o caráter humanista e renascentista da obra de Bruegel, porquanto o louco, em sua ambivalência constitucional, é o símbolo do auto-conhecimento que o Homem só pode alcançar, segundo Erasmo, através da liberdade proporcionada pela loucura. E, como observou esse autor, é através da loucura que a alma pode romper seus liames, fugir do cárcere, pôr-se em liberdade. A loucura é o elo de ligação entre o Homem e Deus, é através dela que se revela ao Homem a sua verdadeira essência, não negando a sua face de "indignitas hominis", mas compreendendo-a como parte de seu Ser e imprescindível à emergência do "dignitas hominis".
É nesse sentido que se aproximam as figuras do louco e de Cristo, justificando-se a relevância da presença do primeiro na gravura analisada. Porque Cristo - filho do homem enquanto corpo perecível e filho de Deus enquanto espírito imortal - é o signo da dualidade, da ambivalência do Ser humano, desse homem que, embora afundado na lama, como diz Klein, tenta desesperadamente alcançar Deus.
Abstract
This article analysesthe iconographic representation of the insane in the sixteenth century, trough Bruegel's work O combate do Carnaval com a Quaresma. An instrument of self understanting, a two-faces figure, a mirror of the humanity wich reflects the duality of every human being, the insane emerges as the symbol of the ambivalence which characterises the conception of "humanists" from Renaissance.
Key Words: Iconography, image, fool, identity, humanism, renaissance.
Referências Bibliográficas
1. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo, Mestre Jou, 1962.
2. ARIÉS, Philippe. Essais sur l ' histoire de la mort en Occident (du moyen âge à nos jours). Paris, Seuil, 1975.
3. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. (O contexto de François Rabelais). São Paulo, Hucitec, 1987.
4. BARTRA, Roger. El salvage en el espejo. México, Coordinación de Difusión Cultural/ Universidad Nacional Autonoma de México, 1992.
5. BOSING, Walter. Hieronymus Bosch. Berlim, Benedik Taschen, 1991.
6. BRANT, Sébasien. La Nef des Fous. (adap. de Madeleine Horst). Paris, Nueé Bleue.
7. BAUMANN, Thereza B. A Gesta de Anchieta: A construção do "outro " nas idéias e práticas jesuíticas nos quinhentos. Dissertação de Mestrado, Pós-Graduação de História (Área de Concentração:História Social das Idéias), Universidade Federal Fluminense,UFF, Niterói,1993.
8. CHAMPEAUX, Gérard de / STERCK, Dom Sébastien. (O.S.B.). Introducción a los símbolos. Madrid, Ediciones Encuentro, 1985.
9. CHARTIER, Roger. História Cultural. Entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 1990.
10. CHEVALIER, Jean e Gheebrant, Alain. Dictionnaire des Symboles. Paris, Robert Laffont/ Jupiter, 1982.
11. DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento. Lisboa, Estampa, 1983, v. I.
12. _____. La Reforma. Barcelona, Labor, 1977.
13. ELIADE, Mircea. Images et Symboles. Paris, Gallimard, 1952.
14. ELLIOT, J. H. La Europa Dividida. (1559-1598). Madrid, Siglo XXI, 1973, p. 127.
15. FERGUSON, George. Signs & Symbols in Christian Art. London, Oxford University Press, 1981.
16. FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo, Perspectiva, 1993.
17. GARNIER, François. Le Langage de l'image au Moyen Âge. Signification et Symbolique. Paris, Le Léopard d'or, 1982.
18. GIORDANO, Oronzo. Religiosidade Popular na Alta Idade Média. Madrid, Gredos, 1983.
19. GUSDORF, Georges. Mito e Metafísica. São Paulo, Convívio, 1980.
20. HEERS, Jacques. Festa de Loucos e Carnavais. Lisboa, Dom Quixote, 1987.
21. KAY, Marguerite. Brueghel. Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico, 1987.
22. KLEIN, Robert. "Le théme du fou et l'ironie humaniste" in La forme et l'intelligible. Paris, Gallimard, 1970.
23. LE GOFF, J. "Esboço de análise de um romance cortês" in Marvilhoso e Cotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa, Edições 70, 1985.
24. PANOFSKY, E. "Iconografia e iconologia"; uma introdução ao estudo da arte da Renascença" in Significado nas Artes Visuais. São Paulo, Perspectiva, 1991.
25. Perlesvaus o el alto livro do Graal. Madrid, Siruela, 1985.
26. ROTTERDAM, Erasmo de. Elogio da Loucura (Encomium, id est, Stultiae Laus). São Paulo, Victor Civita/Abril Cultural, coleção "Os Pensadores", 1972.
27. SCHMITT, Jean Claude. La raison des gestes dans l'Occident Médieval. Paris, Gallimard, 1990.
28. TOLNAY, Charles. "Brueghel" Les Grands Siècles de la Peinture. XVI Siècle. (org. Albert Skira), Gèneve/Paris, Skira, 1954, v. VII.
29. UNTERMAN, Alan. Dicionário judaico de lendas e tradições. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992.
Notas
*. Mestre em História Social (Universidade Federal Fluminense) e doutoranda em História Social das Idéias (Universidade Federal Fluminense).
(1). Brueghel L'ancien. Tout l'oeuvre peint... . Paris, Flammarion, 1968, p.95. Brueghel, o Velho, nasceu entre 1525-30 no Brabante Setentrional, região da Holanda.
(2). A páscoa cristã originou-se da páscoa que os hebreus celebravam para comemorar a sua saída do Egito. O nome páscoa, origina-se da palavra Pesakh que significa passagem, alusão à passagem da tribo de Israel pelo deserto após a saída do Egito, ou seja, a passagem do cativeiro para a liberdade. A páscoa cristã comemora a ressurreição de Cristo no dia seguinte ao sábado de aleluia. Como a páscoa dos judeus, é uma festa móvel e determina todas as festas móveis do cristianismo. A páscoa cai no primeiro domingo que se segue a 14 noite de lunação (lua cheia) que em geral cai em torno do dia 21 de março, e a páscoa cai entre 22 de março e 5 de abril, coincidindo com o início da primavera.
(3). Schmitt, Jean Claude. La raison des gestes dans l'Occident Médieval. Paris, Gallimard, 1990, 153-154.
(4). Schmid, J.P. De rire paschalis; "Le rire ritual", in Bakhtin, Mikhail. A cultura popular na idade Média e no Renascimento. (O contexto de François Rabelais). São Paulo, Hucitec, 1987, p. 68.
(5). Panofsky, E. "Iconografia e iconologia"; uma introdução ao estudo da arte da Renascença" in Significado nas Artes Visuais. São Paulo, Perspectiva, 1991, p. 52.
(6). Chartier, Roger. História Cultural. Entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 1990, p. 16.
(7). Cf. nota 5, p. 65.
(8). Delumeau, Jean. A Civilização do Renascimento. Lisboa, Estampa, 1983, v. I, p. 132 e, desse autor, La Reforma. Barcelona, Labor, 1977, p. 134.
(9). Elliot, J. H. La Europa Dividida. (1559-1598). Madrid, Siglo XXI, 1973, p. 127.
(10). Tolnay, Charles. "Introduction" in Tout l' ouvre..., cf. nota 1, 7.
(11). Kay, Marguerite. Brueghel. Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico, 1987, p. 8.
(12). Brueghel teria pintado, em 1559, um quadro (hoje desaparecido) sobre essa quermesse, mas restam dois desenhos sobre a festa. cf. nota 1, p. 96.
(13). O "Massacre dos Inocentes" foi pintado em 1565-66 ou, talvez, em 1567. Bastelaer sustenta que essa pintura, assim como o "Ataque dos Camponeses" pintado à mesma época, teriam sido reflexos da violenta política repressora espanhola teria inspirado a Brueghel os dois quadros, ibidem, ibidem, p. 105-106.
(14). Tolnay, Charles. "Brueghel" in Les Grands Siècles de la Peinture. XVI Siècle. (org. Albert Skira), Gèneve/Paris, Skira, 1954, v. VII, p. 156.
(15). Cf. nota 1, p. 5.
(16). Bakhtin, Mikhail. A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento. (o contexto de François Rabelais). São Paulo, Hucitec, 1987, p. 57.
(17). Cf. nota 16, p.63.
(18). Cf. nota 1, p. 7.
(19). Bakhtin cita uma litania paródica inteira sobre os textos da Sagrada Escritura e de orações que começam pela negação latina "Ne" e cujo nome era "Nom de tous les nez" que era, sem dúvida, um trocadilho com sentido malicioso. Cf. nota 16, p. 75.
(20). CHEVALIER, Jean e GHERBRANT, Alain. Dictionnaire des Symboles. Paris: Robert Laffont/ Jupiter, 1982, p. 632-633; BOSING, Walter. Hieroonymus Bosch. Berlim: Taschen, 1991. In "Trípttico do inferno". p. 54.
(21). FERGUSON, George. Signs & Symbols in Christian Art. London: Oxford, University Press, 1981. p. 151.
(22). A colmeia significa a coletividade unida, aplicada e submetida a regras restritas. As comunidades religiosas evocam-na simbolicamente. A abelha tem um papel iniciático e litúrgico. É o signo da sobrevivência post-mortem. Alguns autores medievais invocam-na como símbolo do Espírito Santo. Cf. nota 21.
(23). Bretzel é um biscoito duro, em forma de nó ou de oito com cominho e sal. Cf. nota 2, p. 95; Larousse du XX siècle. Paris: Larousse, 1932, t.I. p. 860.
(24). Larousse du XX Siècle. Paris: Lauresse, 1932, t.II. p. 565.
(25). BAUMANN, Thereza. A Gesta de Anchieta: a construção do "outro" nas idéias e práticas jesuíticas nos quinhentos. Dissertação de Mestrado. Pós-Graduação de História Social. Niterói: UFF, 1993. p. 145-155.
(26). GUSDORF, Georges. Mito e Metafísica. São Paulo: Convívio, 1980. p. 87
(27). DÚMÉZIL, G. Temps et Mythes, Recherches Philosophiques apud GUSDORF, cf. nota 27, p. 88.
(28). Idem.
(29). GIORDANO, Oronzo. Religiosidade Popular na Alta Idade Média. Madrid: Gredos, 1983, p. 131.
(30). Cf. nota 17, p. 69-70.
(31). Cf. nota 2, p. 9.
(32). Cf. nota 22, p. 173.
(33). Cf. nota 21, p. 254-256; sobre a forma trilobada e trevo, ver nota 22, p. 29.
(34). UNTERMAN, Alan. Dicionário judaico de lendas e tradicões. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. p. 206.
(35). Cf. nota 24, v. III, p. 464 e nota 21, p. 435.
(36). Cf. nota 21, p. 237.
(37). BRANT, Sebastien. La Nef des Fous (adaptação de Madeleine Horst). Paris: Nueé Bleue, cap. LXXII. p. 275.
(38). ELIADE, Mircea. Images et Symboles. Paris: Gallimard, 1952. p. 49-50.
(39). DURAND, apud GUSDORF, cf. nota 27, p. 88.
(40). Id., ibid, p. 62-77.
(41). Cf. nota 39, p. 70-71; e Perlesvaus o el alto livro do Graal. Madrid: Siruela, 1985. p.3-4.
(42). CHAMPEAUX, Gérard de / STERCK, Dom Sébastien (O.S.B.). Introducción a los símbolos. Madrid: Ediciones Encuentro, 1985. p. 289.
(43). Cf. nota 21, p. 508-509
(44). Cf. nota 7, p. 22.
(45). KLEIN, Robert. "Le théme du fou et l'ironie humaniste". In La forme et l'intelligible. Paris: Gallimard, 1970. p. 448.
(46). Id., ibid., p. 433.
(47). HEERS, Jacques. Festa de Loucos e Carnavais. Lisboa: Dom Quixote, 1987. p. 105-107.
(48). Cf. nota 37, cap. 72, p. 270-281.
(49). BARTRA, Roger. El salvage en el espejo. Mexico: Coordinación de Difusión Cultural/ Universidad Nacional Autonoma de México, 1992. p. 124-126.
(50). BERNHEIMER, R. Wild Men in Middle Ages. New York: 1970, p. 12-17 apud LE GOFF, J. "Esboço de análise de um romance cortês in Maravilhoso e Cotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa: Edições 70, 1985. p. 115 e passim.
(51). ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1962. p. 602-603.
(52). Cf. nota 21, p. 458 e 619.
(53). Id., ibid., p. 1063 ( sobre o nº. zero) e p. 1019 (sobre o nº. vinte e dois).
(54). Id., ibid., p. 140 (sobre bode expiatório); p.143-144 (sobre bufão); p. 364 (sobre duplo); p.657-658 (sobre anão).
(55). Ibid. p. 263.
(56). Cf. nota 46, p. 437.
(57). Cf. nota 38, p. 3.
(58). Cf. nota 46, p. 437.
(59). Cf. nota 4, p. 152-154.
(60). GARNIER, François. Le Langage de l'image au Moyen Âge. Signification et Symbolique. Paris: Le Léopard d'or, 1982. p. 151-152.
(61). Cf. nota 21, p. 789.
(62). Cf. nota 46, p. 446.
(63). ROTTERDAM, Erasmo de. Elogio da Loucura (Encomium, id est, Stultiae Laus). São Paulo: Victor Civita/Abril Cultural. Coleção "Os Pensadores", 1972. p.151.
(64). Cf. nota 46, p. 439.
(65). ARIÉS, Philippe. Essais sur l' histoire de la mort en Occident (du moyen âge à nos jours). Paris: Seuil, 1975. p. 32-34
(66). Id., ibid.
(67). Cf. nota 38, p. 217.
Para maiores esclarecimentos, consulte o tópico Informaçõesou mande uma mensagem para a Editoria da Revista de História Regional