8.3.07

A Carcomida


A idade diminuiu-lhe as proporções, o tempo retirou-lhe o sumo e vive assim como fruta-passa. Na sua vegetabilidade a água que toma é a que lhe oferecem. De tão gastas as papilas pela pimenta e o sal que lhe maquiaram a fome não lhe importa o mesmo mingau de todos os dias. Traz um olhar baço de idéias, coleciona memórias galantes que outros viveram celebrando o lucro parco nelas mendigado. Quando esboça um desejo é sem pedir nada do tanto que nunca recebeu.
Quase não lhe sobrou nada de humano. Perdida em anacronismos generalizados imagina-se viva.
Não lembra de já ter chorado nem rido.
As roupas mal lhe poupam dos tremores dos quais se envergonha.
Há muito não cruza o portão para a rua.

Tateia as coisas buscando o que é firme e cotidiano. O significado de tudo a sua volta reduziu-se à funcionalidade de apoios e bengalas.
Seus guardados não lhe significam nada.

Guarda de tudo.

Guarda caixas de fósforos recheadas de besouros. Guarda lâminas que barbearam um marido que, de tão ausente, não lhe fez falta ao morrer. Guarda papeis de presentes que outros receberam. Guarda pedaços de barbante que nunca amarrarão nada. As pilhas gastas do rádio que há muito não funciona estão ali colecionadas no canto inferior de uma estante que nunca viu livros.

Qualquer um que a vir se regozijará da própria juventude. Duvidarão de seus méritos os que a conhecerem.



'Misterio e melancolia de uma rua' (1914), de Giorgio de Chirico

Esse quadro tão árido e cheio de potencialidade terrificante já me deliciava na infância quando o vi pela primeira vez em uma enciclopédia. A única figura que me desagrada é a menina com o aro, vítima demais, apelativa demais, pelo menos até onde posso compreender sua presença.

O artista, criador da Pintura Metafísica, apresenta em suas telas um mundo aparentemente irreal envolvido por espaços urbanos vazios, desabitados e banhados de uma luz fria. Ilustrou livros dos poetas surrealistas Jean Cocteau e Paul Éluard. Obviamente realizou outras coisas.