24.7.07

Leitura doméstica

Fico atento a certas atitudes minhas em relação à leitura como a de só pegar em um livro quando não tenho mais nada a fazer. Como se ler fosse desnecessário ou pior, improdutivo. Percebo que às vezes ofereço a mim mesmo um momento de leitura como recompensa por outra tarefa completada, o que não é de todo mal, mas caracteriza um vício.
Fui treinado a não ler. Não deu muito certo. Os livros entravam em casa como contrabando. De todo modo tínhamos uma enciclopédia rota e desatualizada (que eu amava) e a Bíblia (me ensinaram que tem que escrever assim Bíblia, com letra maiúscula). A Bíblia permanecia aberta no salmo XXIII (me ensinaram que tem que escrever assim, com números romanos; deve ser porque os romanos foram legais com os cristãos oficializando a religião).
Minha vó limpava cuidadosamente a Bíblia, mas não lembro se a página do salmo XXIII foi mudada.
Cedo, nas minhas primeiras letras, minha mãe, sempre ao me ver com a cara enfiada em um livro, perguntava “já fez o dever?”, ou então “esse livro é da escola?”
Era o final da década de setenta, a biblioteca da minha escola primária só tinha livro didático, fotografias de Ernesto Geisel e o Manifesto Positivista. Era possível escolher por não ter aulas em troca de ensaios para o desfile do sete de setembro, quando usávamos luvas brancas.
Meu pai também não perdia a oportunidade de insinuar que leitura não era coisa lá muito viril. Devo concordar, só ganhei músculos muito depois da adolescência. Minha vó dizia que ler dava sono e era coisa de preguiçoso, deu um duro nanado pra criar os sete filhos sem um pai, e conseguiu; talvez porque fosse praticamente analfabeta.




Cena de 'O Labirinto do Fauno'

TEATRO DE ANIMAÇÃO IMAGENS, SÍMBOLOS E MITOS


por Ana Maria Amaral


Teatro de Bonecos Tradicional e Teatro de Animação
Nossa relação com o objeto/imagem


Imagens

Em busca da expressão ideal para a dramaturgia do boneco, vejo nas considerações de Toni Rumbau um caminho, quando nos diz que: “Considerar o boneco como linguagem do mito, abre enormes possibilidades. E o ponto de partida se situa na lógica poética e narrativa do mito. Lógica esta sempre ligada à imagem” As imagens, como se formam? Alguma coisa em nós provoca pensamentos que criam idéias, que por sua vez formam imagens, traduzidas depois em palavras. E a palavra então se materializa.


Símbolos

A imagem antecede a palavra, comunica mais rápido e diretamente. É mais universal. A imagem é um símbolo. E, segundo Jung, símbolo é a expressão, ou representação, de um arquétipo. Temos então esta seqüência: objeto-boneco, imagem, símbolo, arquétipo.


Mitos

E o que é um mito? Mito é uma comunicação, uma síntese significativa, não necessariamente verbal. Os mitos podem ser religiosos, ligados ao sagrado, à saga heróica de um povo, ou podem ser apenas contos populares. Os mitos sagrados falam de um tempo impreciso, primordial, como as explicações sobre a criação do mundo. Segundo Jung, são arquétipos e têm sua origem no inconsciente coletivo, são amplos e universais. Independente das diversidades culturais são comuns a toda humanidade. Mitos populares são contos criados por uma comunidade que com o tempo passam a fazer parte das tradições desse grupo. Os contos populares, ao contrário dos mitos sagrados, estão mais próximos da temática quotidiana, também se referem às tradições e acontecimentos de um povo, falam de coisas terrenas mas estão também ligados ao sobrenatural fantástico. Os mitos religiosos e populares se misturam. Jung distingue o homem primitivo do homem civilizado, sendo que no homem primitivo predomina o inconsciente e no homem civilizado predomina a consciência. Os arquétipos se manifestam nos mitos que falam a linguagem do inconsciente, uma linguagem não explícita, mais próxima à compreensão da mente primitiva do que da mente do homem civilizado, por isso o homem primitivo parece estar mais próximo dos mitos que o homem civilizado. E como são os mitos? Os mitos não têm tempo certo, a sucessão dos eventos relatados é aleatória, tudo pode acontecer num mito. Diz-se era uma vez, mas eles não se referem apenas ao passado, falam do presente e do futuro, sem nenhuma regra lógica. Por mais absurdos que pareçam, os arquétipos assim se manifestam nos mitos, em todos os povos, em todos os tempos. Isso nos leva a refletir sobre a necessidade ou não da lógica, ou seja, sobre a importância do racional em nossos pensamentos. Não são ilógicos os nossos sonhos? Os sonhos têm significação relevante, como a nossa mente que parece caminhar de traz para frente, para todos os lados, sem passado ou presente, independente do tempo ou do espaço.


Ritual e Teatro

Os mitos estão associados aos rituais. Mito e rito vêm juntosRituais são cerimônias religiosas durante as quais as tarefas do dia à dia são suspensas. Momento de pausa, de reflexão. A organização de um ritual religioso é rígida, dividida em módulos. Cada ação tem em seu tempo certo, como um jogo, possui regras. O seu início é importante, pois marca o momento de passagem, desta, para outra realidade, para um outro espaço/tempo; também importante é o momento do encerramento, retorno ao quotidiano. Danças e cantos fazem parte dos rituais e importante é o momento em que os mitos são recitados, e a história da comunidade é reverenciada. Eventualmente algumas cenas são dramatizadas, assim, aos poucos, entre o sagrado e o profano, os rituais dão origem aos grandes festivais de dança do Oriente. Narrativas épicas com deuses, príncipes e heróis vão sendo substituídas por personagens que retratam o homem comum. Surge a critica social, a sátira.


O popular e o erudito

Buccus e Manducus, tipos constantes no elenco de personagens das Atelanas de Roma, dão origem à Pulcinella da Commedia dell´Arte, personagem transformado depois em herói do teatro de bonecos e que, atravessando os Alpes, se espalhou por toda Europa. Por onde quer que passasse à ele se somavam outros personagens locais, sempre divertindo o povo com suas sátiras e comédias. São “filhos da rua”, como disse Gaston Baty, pois a familiaridade com o popular sempre foi uma característica do teatro de bonecos.O teatro de bonecos se difunde também nas cortes européias (na corte do Ppe Esterhazy, de Maria Antonieta, na França, de Catarina da Rússia, com Haydn, com Goethe, Maurice Sand, e tantos outros artistas e intelectuais). Apresentava-se com textos clássicos em grandes produções. Transformado para diversão da elite, mesmo assim, a familiaridade com o popular não se perdeu.


Teatro de Bonecos Tradicional no panorama contemporâneo

Como se estrutura o teatro tradicional? Segundo Henry Jurkowski, pelo isolamento geográfico & político. Mas então, como é que ainda hoje, apesar de não haver mais isolamentos geográficos, esse teatro ainda se mantém, mesmo depois de ter perdido seu público original e sofrer todo tipo de influências, das mais diversas culturas, chegando mesmo a ser um contraponto à arte globalizante e homogeneizada do mundo atual? Jurkowski afirma que essa manutenção foi, e continua sendo, garantida pela persistência de conservadores acirrados e pesquisadores apaixonados. Um exemplo? O seminário, ...(colcocar o nome) inserido numa celebração de festas populares, radicionais. A tradição se conserva também, pela re-criação artística feita por artistas da área, que não só mantém a tradição como também lhe acrescem novas direções, novo enquadramento, nova estética, garantindo assim sua continuidade. Quase sempre a tradição se rompe diante dos problemas da sobrevivência. Como mantê-la? Impossível a conservação intacta. Estratificação ou congelamento é equivalente à morte. A tradição é algo vivo que se transforma continuamente.


Novas Perspectivas - Teatro de Animação

Paralelamente às adaptações e mudanças do teatro de bonecos, um novo tipo de teatro se manifesta: o Teatro de Animação. Qual é a diferença entre Teatro de Bonecos e Teatro de Animação? Teatro de Bonecos está mais ligado à tradição e o teatro de Animação está ligado às novas perspectivas do teatro contemporâneo.H. Jurkowski, usa as expressões teatro de bonecos tradicional e “teatro artístico” para distinguir entre um e outro, mas faz questão de ressaltar que essas são expressões paralelas, não contraditórias O que mudou? Do final do século XIX e inicio do séc XX as artes sofreram grandes transformações, de ordem técnica (luz, espaço, som), de ordem social e econômica. O público não é mais mesmo. A mente se modificou. Sob influências Junguianas e Freudianas, criou-se um embate entre o cartesianismo e os novos desvendamentos da consciência. Hoje há uma maior preponderância da emoção. O conceito de personagem mudou. No jogo constante entre o novo e a tradição a dramaturgia se rebela contra o texto clássico e continua ainda em processo de transformação. O boneco deixou de ser o foco principal, e passou a ser substituído por objetos, por formas abstratas, ou a contracenar com atores, dividindo com eles o mesmo espaço cênico, onde ambos estão igualmente expostos. Algumas montagens seguem a linha do teatro visual onde imagens, som e luz preponderam sobre o dramático.Recorrendo ainda à Rambau, vemos que:“Assim como os pintores romperam com o realismo de uma tradição ancestral da imagem, buscando novos valores para sua prática pictórica, o teatro de bonecos também sentiu necessidade de romper com as formas tradicionais, basicamente populares. Mas o fato da marionete ser também essencialmente teatro obriga-nos a ir além de um simples tratamento não realista da imagem obriga-nos a colocar questões específicas do teatro. Ou seja, não importa apenas como os bonecos sejam concebidos: estilizados, realistas, abstratos, mas sim importa também a maneira como determinada idéia de espetáculo se coloca em cena. Segundo Rumbau,as soluções então apresentadas são duas: 1º.) a busca de valores mais estéticos, seguindo o fascínio pela artes plásticas, sob a influência do simbolismo e do surrealismo (Freud e a nossa consciência) desprezando aspectos dramáticos do teatro; 2º.)ou a ênfase é o teatral, e nesse caso a imagem, realista ou não, se adapta à uma lógica própria do teatro de ator. Nos dois casos sente-se como se não se houvesse ainda encontrado um caminho. No primeiro caso, fascinados pelas artes plásticas, esquece-se que o boneco é teatro. E, no segundo caso, ligado ao ator, esquece-se que o boneco não é psicológico, e não se chega lá. Como vemos a dramaturgia do Teatro de Animação parece difusa e confusa. O Teatro de Animação parece tomar tantas direções que sua expressão ainda não se configurou. É ligado às artes plásticas? Ao teatro? Quem ganha ou perde do ator? Muitos grupos se orgulham de apresentar bonecos misturados aos atores. Mas qual o caminho? Voltar à tradição, ao teatro popular, ao jogo do ator, ao teatro visual, ao mito? Talvez Rambau nos esteja apontando o caminho certo pois assim não só se mantém a relação com as artes plásticas como também com o teatro. E quem sabe poder-se-ia ocupar um espaço diferenciado dentro das artes cênicas? Usar o boneco na linguagem do mito abre muitas possibilidades, pois mantendo-nos fiel à lógica da narrativa mítica, estamos nos mantendo ligados à lógica da imagem. Para Rambau, uma vez que se tem um tema visualmente definido através de imagens, o esquema dramático já está no caminho certo, pois as imagens explicam o argumento mítico. Um roteiro criado com imagens é o veículo natural de comunicação de um mito. O boneco é a imagem de um símbolo, portanto, um arquétipo.


A Imagem

A imagem sempre foi ponto de partida para muitos artistas.Impossível aprofundar aqui os muitos e vários conceitos sobre a imagem, mas podemos ainda refletir sobre a imagem no campo da criação literária, tomando Ítalo Calvino como exemplo. Calvino coloca a imagem como ponto de partida para a criação dos seus contos fantásticos. Diz Calvino: “Podemos distinguir dois tipos de processo imaginativos: o que parte da palavra para chegar à imagem visiva e o que parte da imagem visíva para chegar à expressão verbal.” Há portanto, na literatura, um caminho de duas mãos: da imagem à palavra, e da palavra à imagem. Mas de onde provêm essas imagens? Calvino diz que na origem de cada um dos seus contos existe uma imagem:“A primeira coisa que me vem à mente na idealização de um conto é uma imagem que por uma razão qualquer apresenta-se a mim carregada de significado. A partir do momento em que a imagem adquire uma certa nitidez em minha mente ponho-me a desenvolvê-la numa historia. E são as próprias imagens que desenvolvem suas potencialidades implícitas, pois trazem um conto dentro de si”. Vemos então que, também para ele, as imagens têm uma lógica própria e desenvolvem suas potencialidades intrínsecas. Assim como o boneco contem em si um significado próprio, assim também os materiais usados no teatro de formas ou no teatro visual, falam através de suas texturas, cor, movimento.Fascinante refletir ainda aqui sobre o sentido de imagem, sob o ponto de vista da neuro ciência, que estuda como o nosso organismo reage diante de uma imagem, quais os seus reflexos em nossa consciência. Antonio Damaso, famoso neurologista português, mostra que a capacidade do corpo para sentir estímulos e reagir aos seus próprios processos e ao meio é a chave para o fenômeno da consciência. Ao buscar desvendar os enigmas da consciência, busca compreender como o nosso organismo reage no contato da imagem, frente aos objetos, no contato com o mundo físico, em geral. Para Damaso, “consciência é a percepção que um organismo tem de si mesmo e de tudo que o cerca”. Ele busca definir a relação que existe entre um objeto e o nosso organismo. Organismo aqui tido sob ponto de vista amplo, de tudo aquilo que se refere ao nosso corpo e a nossa mente, pois não existe corpo sem mente, nem mente sem corpo. Os objetos do mundo físico provocam uma transformação em nós. E imagem para ele é todo e qualquer estimulo, visual, auditivo, tátil, etc. As imagens são construídas em nosso cérebro de fora para dentro, (objetos e sensações físicas). e de dentro para fora, (memória, emoções). Há uma interação entre os objetos físicos e o nosso cérebro. Antonio Damaso ao estudar como percebemos, sentimos ou reagimos diante dos objetos, ou ao estudar a relação do nosso organismo (incluído aí o cérebro) com o inanimado, ele está falando exatamente da relação que se estabelece entre o ator-manipulador e o mundo inanimado dos nossos personagens, formas ou objetos, apresentados do Teatro de Bonecos, no Teatro Visual ou no Teatro de Animação. Ele nos faz refletir também sobre as emoções que os objetos, bonecos ou imagens provocam no público.Comecei por pretender levantar reflexões sobre a dramaturgia, sobre a importância da imagem e sobre nossa relação com os mitos, com as manifestações populares do teatro tradicional e as perspectivas atuais desta nossa arte no mundo contemporâneo, mas na verdade esta reflexão é mais ampla. Abrange não só o teatro, mas é uma reflexão sobre a arte tradicional e a arte contemporânea. Esse me parece ser o dilema em que nos encontramos.
Postado no 'Vertente Cultural' por Carlos Augusto Nazareth em 20 de agosto de 2006