22.4.06

A primeira híbris

Está alí com sua híbris ameaçadora, voluptuosa. Sentada sobre as patas traseiras, lambendo a direita dianteira, a língua rápida mentindo maciez. As asas pousadas sobre as ancas com muito alinho mas sem pudor. Nada me pergunta e até duvido que me perceba ali, detido por sua presença incrível e desdenhosa.
Como termina o asseio da pata direita começa o da esquerda a partir do ombro, seu rosto humano se oculta sem que eu tenha tempo de compara-lo a qualquer outro tomado ainda do terror nauseabundo e irresistível provocado pela visão do seu corpo de gato alado.
Remói agora a curiosidade de ver-lhe o rosto, nosso único vínculo como criaturas presentes nesse encontro incômodo e estranhamente inevitável; e inevitável por desejável mas de um desejo inconfessável nem sequer pensado, talvez sonhado mas em sonhos esquecidos, desses que ao acordarmos dizemos não ter, naquela noite, nada sonhado.
E agora, na expectativa que me fixa o olhar em sua volta de pescoço, tento lembrar-lhe o rosto, senão de agora a pouco pelo menos de nalgum sonho remoto. Nenhum rosto de mulher se encaixaria ali. E agora até me reprovo por supô-la mulher... Toda híbris para um homem é mulher. Não é possível culpar nada mais por suas mais profundas ansiedades.
Num repente a criatura pára as lambidas ao ombro e levanta a cabeça ainda sem voltar-me o rosto. Só aí tenho certeza de ser percebido. Ela estática; a pata um pouco levantada e espalmada como pousada sobre o peito invisível do amante a quem rejeita devorar. As patas traseiras se ajeitam alternando o peso da anca, a cauda hipnótica é a última coisa que vejo depois do salto que lhe faz sumir atrás do muro. O guincho sufocado na garganta de um pássaro é o último que ouço denunciando ainda sua existência e me sinto ainda indigno de respirar.





foto: Luiz Felipe