19.7.07

Os residentes

de Bill Domonkos

A refinada arte do envenenamento

Dirigido por Bill Domonkos, música de Jill Tracy.

Repostagem

Três minicontos sobre híbris


A pimeira híbris

Está alí com sua híbris ameaçadora, voluptuosa. Sentada sobre as patas traseiras, lambendo a direita dianteira, a língua rápida mentindo maciez. As asas pousadas sobre as ancas com muito alinho mas sem pudor. Nada me pergunta e até duvido que me perceba ali, detido por sua presença incrível e desdenhosa.Como termina o asseio da pata direita começa o da esquerda a partir do ombro, seu rosto humano se oculta sem que eu tenha tempo de compara-lo a qualquer outro tomado ainda do terror nauseabundo e irresistível provocado pela visão do seu corpo de gato alado.Remói agora a curiosidade de ver-lhe o rosto, nosso único vínculo como criaturas presentes nesse encontro incômodo e estranhamente inevitável; e inevitável por desejável mas de um desejo inconfessável nem sequer pensado, talvez sonhado mas em sonhos esquecidos, desses que ao acordarmos dizemos não ter, naquela noite, nada sonhado.E agora, na expectativa que me fixa o olhar em sua volta de pescoço, tento lembrar-lhe o rosto, senão de agora a pouco pelo menos de nalgum sonho remoto. Nenhum rosto de mulher se encaixaria ali. E agora até me reprovo por supô-la mulher... Toda híbris para um homem é mulher. Não é possível culpar nada mais por suas mais profundas ansiedades.Num repente a criatura pára as lambidas ao ombro e levanta a cabeça ainda sem voltar-me o rosto. Só aí tenho certeza de ser percebido. Ela estática; a pata um pouco levantada e espalmada como pousada sobre o peito invisível do amante a quem rejeita devorar. As patas traseiras se ajeitam alternando o peso da anca, a cauda hipnótica é a última coisa que vejo depois do salto que lhe faz sumir atrás do muro. O guincho sufocado na garganta de um pássaro é o último que ouço denunciando ainda sua existência e me sinto ainda indigno de respirar.
(postado inicialmente aquí em 24 de abril de 2006)


A segunda híbris

A incógnita me burla onde quer que eu possa suspeitá-la. Assim que a percebo na sombra dos móveis ela se torna uma meia, camisa torcida, um trapo, qualquer coisa que expresse inocência fingida. Ela também se oculta nas novas manchas da parede depois da chuva. Se infiltra nos recôndidos, me aguarda num cesto. Mimetiza-se entre os pêssegos recém colhidos ou na tapeçaria pendurada no vão das portas. O que resguarda a memória do tronco de uma árvore alí ela se enrosca em volutas atávicas de quem há muito só sabe tocar as coisas com o todo de seu corpo. Pendura sua cabeça triangulada como o fiel da balança; assim todos os pêndulos me assustam como se ela os possuísse. Ela está na maneira como os líquidos viscosos se derramam. Ela mesma derrama-se em queda surda. O ar suspenso em meus pulmões ajuda-me na petrificação diante de sua sinuosidade. Só assim percebo-a além de sua contenção; fugindo à sua constrição. Petrificar-se é adormecer e também estar alerta à sua especificidade contínua, contígua.
(postado inicialmente aquí em 7 de dezembro de 2006)


A terceira híbris

Descobri a vertigem no embalar da rede. Os pés golpeando a parede para vôos mais e mais altos. As cordas torcidas rangendo modorrentas como os liames de um navio assombrado. Velas depostas porque nada as enfunava. Depois o sono me sedando os impulsos quando o último me entregava ao balanço de voltas cada vez mais curtas até a inércia. À cavilação solitária preferia o sono; o timão livre girando ao prazer das ondas. Era quando ela vinha.Na minha infância tinha asas.Espreitava desde os caibros suspensos em tramas a sustentar o palheiro ou do cimo da gameleira onde engendrava seus feitiços. Era ela que me pesava as pálpebras e dos músculos das mãos me tirava o tônus; as plumas acariciando meus olhos fechados. Assediava meu sono sedenta de minhas poluções. Nunca a vi, mas suspeitava-lhe fitando-me com um olho de cada vez. Vivia em sobressaltos: de dia um movimento de copa de árvore, uma lufada quente, um redemoinho, de noite os sustos eram o dardejar dos morcegos, dos pombos, das mariposas no fundo da noite em meio ao ressonar dos vivos. Trilava, titilava, guinchava pesando-me sobre o peito até que eu sufocasse e num grito surdo saltasse do fundo de minha queda até a vigília. Os olhos cravos no nada, no tudo. Os lábios ressecados ainda sentiam-lhe o sopro.Depois, perdidas as penas ganhou escamas. O medo agora era o fundo do rio e seu lodo ameaçando tragar-me para o fundo do nem mais. Do céu inconsútil passou a habitar os igarapés, os igapós, o espiralar de entrecorrentes do rio com o mar onde tudo se perde. Sua estridência deu lugar a sussurros, um gotejar da bica, um murmúrio de regato, um espadanar de bicho no remanso. Tudo o que é côncavo guarda sua voz e o que nela não é voz espreguiça-se nas pedras batidas pelo mar onde quara o sargaço de suas melenas prênseis.Partilhada a rede não mais me angustiou, partiu a buscar outros núbeis.
(postado inicialmente aquí em 25 de janeiro de 2007)