1.3.07


Os igarapés parecem prender a noite dentro de seus espelhos. A negrura guarda a profundidade, a cobra monstruosa da perenidade. Minha infância é turvada do visgo, do lodo do remanso. A imaginação da criança amazônica é um manancial de assombrações tão prazerosas quanto terríveis. Lá o sol se mantém eternamente crivado pela copa das árvores, um sol inerme.

O abismo das águas é o que me fustiga a imaginação de moleque-bicho.
O rio dos meus medos e brinquedos levou o meu irmão. Num lugar tão permeado de água não seria outro elemento a mais tragar a juventude. Ele foi lá e achou mais do que eu. Achou o termo e decidiu a própria sorte. Há tempos não choro, que estranha saudade essa de chorar. A maturidade me secou as lágrimas e assim, destituído de toda autopiedade, sou árido.
A intimidade com os monstros do rio era o esbarro do peixe boi na canoa fina, não mais que um graveto.

A casa do interior na minha infância eram duas casas; uma noturna, uma diurna. A diurna quase não conhecíamos porque de dia as crianças ganham mundo, vão experimentar os medos das cacimbas, do rio, dos igarapés, da casa de farinha, do além da estrada que, como o fundo do quintal, era o próprio reino do perder-se pra sempre. Mais medo tínhamos do igapó. No igarapé era a mãe-d’água, jacaré, boiúna; mas no igapó era o sumidouro, águas sem fundo onde quem botasse o pé já era pra não mais voltar. Ficava ali perdido dentro d’água entre as raízes, ou afundava pra sempre, sempre afundando até perder o nome e virar o menino do igapó. O mais estranho nesse lugar do medo, o igapó, é que, quem cai ali não morre, vive ali, esquecido, sumido. Aqui em Salvador fiquei longe da morte do meu irmão. Foram-se dez anos sem que o visse. Agora está no fundo do rio.
Minha aridez de estátua jacente deve seguir lamentando numa representação suspensa, eterna e sem lágrimas. Imagino sua sombra com um rosto ainda adolescente mal iluminando o negrume do fundo do rio.