17.4.07

O mundo estranho


Essa é a concha partida
que preserva a lembrança de quando não me contive
essa areia que arremeda úmida uma antiga concisão constrói desconstruindo
a morada que hoje me abriga
libertar-me foi perder-me
fere-me os pés essa praia de conchas quebradas
livre de traduções alheias não há nácar que me reflita e vivo no opalescer de nada me constatar existindo
sem contenções espráio-me indefinido
sou um eterno regurgitar de bolhas na espuma
minha história contei ferindo a areia
nada sobrevive à contingência das marés
A imagem é uma pintura de
Gustave Courbet intitulada
'A origem do mundo'

12.4.07

Mapinguarí

Foi enternecedor resgatar o conto da postagem anterior escrito já a dez anos. Entre as boas lembranças que me vieram ao revisitá-lo está a dos encontros de volta às aulas com Joaquim Castro, um amigo de adolescência e ginásio no Intituto Catarina Labourè de Belém, que se maravilhava com as estórias que eu trazia do interior, assimiladas dos mais velhos nas noites das férias de dezembro iluminadas à lamparina quando nós meninos, já aboletados em nossas redes, éramos ninados pelas conversas vindas desde a cozinha junto com o cheiro de carvão e café. Joaquim tinha uma imaginação exuberante, era um prazer narrar-lhe os causos que me entranhavam na mente tão vivos porque contados, ouvidos e recontados com muita fé. Obviamente já não sou tão crédulo e é provável que este meu amigo já não o seja também, mas algo permanece daquela alma sôfrega que ainda me atira, cheio de prontidão, diante de uma conversa ao pé do fogão ou de um bom livro.
Joaquim e eu misturávamos tudo. Tudo fazia parte de tudo e éra-nos possível ver referência de lendas indígenas em Júlio Verne e na mitologia grega tratada por Monteiro Lobato em Os doze trabalhos de Hércules. Marcopolo e Erich von Daniken nos faziam duvidar e acreditar ao mesmo tempo.
Hoje me veio a curiosidade de procurar no Google sobre o Mapinguarí, o ser monstruoso que habita o imaginário dos índios e caboclos e sobre o qual trata o pequeno conto da postagem anterior. Nada encontrei que pudesse somar. Tudo é muito cômico e coberto do ranço pretensioso de enciclopédias baratas. Tudo reduzido ao folclórico superficializado que deve fazer tinir os ossos de Câmara Cascudo e contra o qual acredito ter lutado Ariano Suassuna e a turma do movimento armorial.
Não sei se é possível escrever sobre algo sem referências emocionais. Talvez seja um virtuosismo ocultar estas referências.

8.4.07

Onde tudo se perde

Embaixo o negrume insondável.
Aquele galho era agora todo o seu mundo, única coisa existente a salvá-lo do horror sob si. Não que pudesse sequer olhar, que o negrume se olha sem olhar. O negrume começa por dentro, destemperando a alma, enfraquecendo músculos, tornando tudo a volta parte do pesadelo. O nome do horror teimava-lhe na mente. Queria evita-lo, evitar o nome, era aquilo, a coisa, o sem-nome, o horror. Mal se sustinha no galho, os dedos dormentes, um cansaço de horas. O galho que sabia frágil. O horror movia-se irritado. Como não pudera sentir-lhe o cheiro antes? O horror exalava odores que suscitavam imagens repugnantes de pêlo molhado, de lodo, de azedo de coisa podre. Imaginava a bocarra aberta na barriga exalando aquele cheiro, pronto pra lhe engolir inteiro caso aquele galho não mais lhe suportasse o peso. Vinham-lhe os medos da infância, do que se contava, que a coisa te engolia inteiro e tu não morrias não! Ia vivendo nas entranhas.
O rio estava perto, e se pulasse na água? Ficando era certa a morte, ou pior. A árvore tremia, imaginava as garras do horror cada vez mais perto; ouvia a casca da árvore se soltando. Arriscaria pular nagua, não tinha outro jeito, era assim. Preparou o pulo, precisava cair o mais longe possível da árvore, queria saber com mais certeza de que lado pular, o cheiro do horror lhe embotava a mente, o timbó do horror. Botava o nariz lá pro alto a ver o cheiro da água. Sentiu o musgo na árvore, resolveu pular pro lado que o musgo cresce. Lascas da casca da árvore já lhe atingiam o rosto. O horror bem perto do seu calcanhar, o cheiro. Soltou as mãos, impulsionou com as pernas e foi cair longe no igarapé, os galhos sob a água lhe arranhavam, prendiam, e ele só imaginava as garras longas do horror lhe alcançando a pele. Nadou com espadanar furioso, do outro lado agarrou as raízes do mangue. O grito do horror lhe veio alma adentro, um silvo agudo, triste, uivo de maldição. Aliviou-se ouvindo longe o grito, mas já o desespero apertou-lhe a garganta quando um corpo pesado quebrou o espelho dágua vindo-lhe ao encalço, desatou carreira no mato até perder os sentidos.
Depois que o trouxeram passaram dias até não mais ver bicho quando olhava gente; ainda assim de noite com tudo se assustava e dava de se debater e gritar. Os pequenos apanhavam dele e perdiam seus apitos.
Ficou mais de mês empanemado. Todo mundo sabia que mais cedo ou mais tarde ele ia falar. Não era o primeiro a voltar do mato assombrado. Ficou de resguardo que nem mulher prenhe. Dormia o dia todo e de noite fazia vigília. Sempre tinha um ou dois a acompanhar sua insônia. Aumentavam o fogo e pitavam sentados nos tamboretes. Numa dessas noites começou a desatar a língua. Era assim: uma palavra, um silêncio, outra palavra; talvez com medo de atrair o bicho, de que a memória do horror viesse toda de vez. Os outros ninguém não dizia nada, só escutavam. E quando ele silenciava era possível imaginar a outra parte da história naqueles olhos vidrados em direção à copa das árvores, como se através delas, lá longe, na cabeceira do rio, visse o horror em meio ao negrume, pensando nele. Quando o mato silenciava ficava de butuca, apurando o ouvido, espreitando o grito assobiado do bicho. Mas era só ouvir pássaro, grilo que ele sossegava, baixava as pálpebras aliviado. Se o horror estivesse por perto não haveria som nenhum, só o estalar de galhos.
Nunca mais saiu pra pescar sozinho, quando ia já queria voltar no chiar da cigarra.
Menino não teve que deixou de ouvir na beira da noite essa história, mesmo depois, homens feitos, pegavam seus tamboretes e se chegavam pra perto dele quando acendia seu cachimbo. A cada noite havia um jeito novo de contar, sempre evitando o nome do bicho. Subiam-lhes os pelos da nuca se ele calava de olhos duros lá pro lado do mato encolhendo-se no tamborete como se de novo encarapitado no galho daquela árvore, balbuciando que Ele estava lá longe, esperando.
Uma noite que não tinha ninguém a querer lhe fazer companhia, sumiu. Deixou o cachimbo sobre o tamborete. Perdeu-se no mato. Nunca acertou o juízo, ou foi bicho que lhe veio buscar.





'Perro semihundido' 1820 / 21, Museu do Prado, Madrid


A cabeça aflita de um cão em meio a aridez. É preciso ter cuidado com vítimas encurraladas. Gosto muito das pinturas negras de Goya, na verdade, para ser mais preciso e talvez didático, a pintura dele a ilustrar essa postagem deveria ser 'Saturno devorando a un hijo' mas o 'Perro' é mais sutil e igualmente aterrador. Por enquanto é possível ver grande parte de seu trabalho em gravuras no MASP até 20 de maio

5.4.07

O Homem Pálido


Uma imaginativa e profunda personagem criada para o filme 'O Labirinto do Fauno' de Guilhermo del Toro, crítica aguda à Igreja. O terror que causa, pelo menos a mim, vem da lembrança da brincadeira que os adultos fazem de esconder os olhos para fingir não ver a criança. O filme é um conto de fadas eficiente e cruel, como toda criança, como todo conto de fadas deve ser.
Para quem não assistiu e quer conhecer um pouco antes de se aventurar em pesadelos atávicos este á o site oficial http://www.panslabyrinth.com/ .