Nem lembro bem se em 87 ou 88, por acaso, me cai nas mãos “O Agrimensor da Aurora” de Homero Homem de Siqueira Cavalcante, poeta do Modernismo brasileiro. A canção na poesia dele me interessava. Lia aquele mesmo livro muitas vezes, saltava as páginas, dizia alto suas palavras. Sem perceber, de forma quase indolor, a poesia dele se tornou o meu crivo de tudo. Perdi o livro, mas aí já podia perdê-lo. Escarafunchando um sebo em São Paulo encontrei agora um outro, “O Livro de Zaira Kemper e Poesia reunida”, anterior, de 1972, com algumas das conhecidas poesias. Percebi diferenças e claro, para a edição de “O Agrimensor da Aurora” ele deve ter feito revisões.
Neste alguns contemporâneos lhe fazem vênia mais que merecida a guisa de introdução, gostei dessa de Drummond:
“Vai chovendo lá fora. E me comove um livro sangue:
O país do não chove.
O poeta Homero Homem quis dizer
Em verso claro _ e disse _ o velho doer
De penas nordestinas tão doídas
Que de lembradas tornam-se esquecidas
Mas de novo precisam ser lembradas
E, por mão da poesia, resgatadas”.
(Correio da Manhã, “Imagens Soltas” / Na Semana)
Agora estas dele:
O Tratador de baleias
Quando voltar à praia do Tibau
Irei à estalagem dessas grandes
Mães solteiras no ciclo preguiçoso
Do esguicho, do mergulho e da mamada.
Viração matinal minha colméia
De abelhas digitais vai almojar
Nas tetas da placenta o leite grosso,
Desnata-lo de âmbar e sacarina.
Finda a ordenha meu banho de alumínio
No verão de tarrafas, albacoras
E lagostins e saunas de piscina
Bronzeando as nuanças dessa faina
De flutuar baleias encalhadas
Pelas auras do mar, amplas meninas
De mêntruo azul acima do panejo
Das gaivotas e morses repentinos
Quando voltar à praia do Tibau
Arrendo um estaleiro à beira mar
Para docar baleias arpoadas.
Meus dedos, pinças leves mechas claras
Mergulhados no iodo das manhãs
Gessarão os rombilhos escarlates
Na carne predileta desses alvos
Dos armadores e canhões de pôpa.
Quando voltar à praia do Tibau
Demarco um cemitério ao pé do mar,
Arpoadouro de baleias mortas.
Catafalco de incenso e ladainha
Iluminado a tiro de festim,
Balizo oito golfinhos laterais
Para guiar amor e seu amor
Imóvel entre cruzes de sargaço.
Quando voltar à praia do Tibau
Promovo uma semana do Cetáceo
Para acudir às crias desmamadas.
Ponte aérea de lã e pelerina,
Empório de mingau e leite em pó,
Despacho meu comboio de gaivotas
À laguna do atol onde encalhou
_ perdida sua teta predileta_
O filhote que muge e se congela.
Quando voltar à praia do Tibau
Construo um farolete de holofotes
Para guiar baleias arpoadas.
(No “O Agrimensor da Aurora”, salvo engano, estes últimos versos estariam assim: “Quando voltar à praia do Tibau/ com o espermacete das baleias mortas/ construo um holofote de mil velas/ para guiar baleias arpoadas”)
Inscrição
Hera recubra a praia, êsses caminhos
De cravo trevo flores sem agravo
Que brotam em tua e em minha boca.
Casta raiz da noite seu cipreste
Soterre em vento claro de anistia
O que em nós foram passos passos passos.
O mar e suas torres lave, leve
Dessa rua deserta transversal
O que em nós foi eterno e foi tão breve.
Rumor de escola, riso na calçada
Refloreste em manhãs meu condado
De cravo trevo flores sem mais travo.
A Crônica da rua, suas lápides
De nós possa guardar a azul rotina:
CHEGARAM DE MÃOS DADAS E SE FORAM.
Dedicatória
Talvez por precocidade
De aurora no entardecer,
Certa lição do poente,
Menino vim a saber.
Nela Bandeira foi mestre
E Carlos, archonte-rei
Será igualmente grande
Quando chegar sua vez.
Juvenilmente, Drummond
Aprendo em você, feliz
A multilição diária
De ser jovem por um triz.
E pra fechar, reabrindo, o pedido cheio de esperança inútil que se faz a cada poema escrito.
“Te darei o que quiseres / pedrinha, raspa de unha / contanto que não repiques / noite alta esse malino / regougo de galo prêto / contanto que cessatil / dissolvas no copo d’água / o travesseiro e essa dor”.
Homem, Homero, O Livro de Zaira Kemper e Poesia reunida de Homero Homem, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1972