25.3.07

Matintaperera

Dentre os seres encantados que assombraram a minha infância são os aéreos os que ainda me fermentam a imaginação. Destas assombrações a mais temida é a matintaperera. Assoprando um apito de osso humano ela se anuncia sobre os telheiros agourando os viventes. Voa num vento enfeitiçado que a alça pelas vestes de sarrapilha. Pode também se metamorfosear em pássaro. Para faze-la cair de seu vôo fecha-se fortemente uma tesoura a sua passagem. Se algum caboclo dorme na rede atada na varanda a matintaperera cospe o fumo que masca em sua boca e o infeliz seca até a morte.
A matintaperera é qualquer mulher velha que alguma maldição obriga toda noite a visitar sete cemitérios equilibrando uma lamparina acesa na cabeça. Durante o dia desconhece sua sina. Quando à noite se ouve seu assobio é preciso desenhar ao terreiro uma estrela de cinco pontas para mantê-la distante. Querendo descobrir quem vira matintaperera é preciso fazer o seguinte: de noite quando ela passar sobre a casa assobiando é só gritar ‘matinta vem buscar fumo!’. No outro dia a velha inocentemente vem pedir fumo revelando seu fado. Não se sabe como desencantar matintaperera.
Ouve-se contar que certo grupo de estudantes soube que havia matintaperera no bairro e decidiu pagá-la em tocaia. Aboletaram-se na beira da estrada perto de um cemitério por várias noites até que a viram chegar e num susto prenderam-lhe as mãos para que não chamasse o vento. Retirando-lhe os cabelos da face descobriram tratar-se da mãe de um deles.
Quando matinta pressente sua morte sai pela estrada apregoando ‘Quem quer?’ e aquela que disser ‘eu, eu quero!’ toma para si o fado.

Resgatando meus velhos escritos decidi investigar e descobrí equívocos diversos de pessoas alheias à vivência nativa com este ente. Muitos associam-na às bruxas européias, ao saci-pererê, aos duendes protetores da floresta e aos vampiros. Mesmo nas capitais nortistas é possível encontrar tais associações exóticas. Não consigo ver qualquer semelhança. Alguns dizem-na feiticeira, mas nunca ouvi tal coisa junto ao povo. Matinta não faz feitiços, só cumpre sua sina, está, nesse sentido, muito mais próxima do lobisomem. Os relatos que ouvi e minha experiência na vida de sítio do interior do Pará atestam o que afirmo. Confundem-na com o rasga-mortalha, uma coruja cujo grito lembra um pano sendo rasgado e que, ao ser ouvido, prenuncia morte na família.
Velhas morando sozinhas em choças no fundo do mato me foram apontadas como sendo matintaperera. Eu e meus primos chegamos a visitar uma delas quando os adultos nos mandaram buscar fogo. Era manhã, o ar ainda úmido de sereno. Por uma picada estreita varamos o mato até uma clareira onde se erguia a pequena casa de tabique, as samambaias nos molhando as pernas. Um pano encardido fazia vezes de porta, dentro o cheiro de fumo e peixe tornava o ambiente estranhamente acolhedor. ’A vó mandou pedir fogo.’ Ela não disse palavra, só pegou do fogão de barro um tição e nos entregou sem nos olhar na cara. Saímos rápido sem nem agradecer porque é vergonhoso pedir fogo, é como admitir desleixo. Só quando chegamos em casa é que os adultos nos contaram ser ela matintaperera. Era assim, o medo, o receio, os perigos relativos; real e imaginário indistintos. O imaginário ( se for possível dissociá-lo da fantasia) não é escapismo, mas uma forma eficiente de existir.


Matintaperera
Chegou na clareira
E logo silvou,
No fundo do quarto,
Manduca Torcato
De medo gelou
Matinta quer fumo
quer fumo migado,
meloso, melado,
que dê muito sumo...
Torcato não pita,
não masca nem cheira.
Matintaperera vai tê-la bonita...
Matintaperera,
de tardinha vem buscar
o tabaco que ontem à noite
eu prometi,
queira Deus ela não venha me agoniar,
Ah! Matinta, preta velha, mãe-maluca,
pé de pato.
queira Deus ela não venha me agoniar......
Matintaperera
chegou na clareira
e logo silvou.
No fundo do quarto
Manduca Torcato
de medo gelou.
Que noite infernal,
soaram gemidos,
resmungos, bulidos,
do gênio do mal...
E, até amanhã,
bem perto da choça
a fúnebre troça
dum vesgo acauã
acauã...acauã...
Waldemar Henrique
Música de Waldemar Henrique, letra de Antônio Tavernard

(Matintaperera, Matinta Pereira, Mati-taperê, Matim-taperê, Titinta-pereira, Mat-Taperê, do Tupi - matintape're).

8.3.07

A Carcomida


A idade diminuiu-lhe as proporções, o tempo retirou-lhe o sumo e vive assim como fruta-passa. Na sua vegetabilidade a água que toma é a que lhe oferecem. De tão gastas as papilas pela pimenta e o sal que lhe maquiaram a fome não lhe importa o mesmo mingau de todos os dias. Traz um olhar baço de idéias, coleciona memórias galantes que outros viveram celebrando o lucro parco nelas mendigado. Quando esboça um desejo é sem pedir nada do tanto que nunca recebeu.
Quase não lhe sobrou nada de humano. Perdida em anacronismos generalizados imagina-se viva.
Não lembra de já ter chorado nem rido.
As roupas mal lhe poupam dos tremores dos quais se envergonha.
Há muito não cruza o portão para a rua.

Tateia as coisas buscando o que é firme e cotidiano. O significado de tudo a sua volta reduziu-se à funcionalidade de apoios e bengalas.
Seus guardados não lhe significam nada.

Guarda de tudo.

Guarda caixas de fósforos recheadas de besouros. Guarda lâminas que barbearam um marido que, de tão ausente, não lhe fez falta ao morrer. Guarda papeis de presentes que outros receberam. Guarda pedaços de barbante que nunca amarrarão nada. As pilhas gastas do rádio que há muito não funciona estão ali colecionadas no canto inferior de uma estante que nunca viu livros.

Qualquer um que a vir se regozijará da própria juventude. Duvidarão de seus méritos os que a conhecerem.



'Misterio e melancolia de uma rua' (1914), de Giorgio de Chirico

Esse quadro tão árido e cheio de potencialidade terrificante já me deliciava na infância quando o vi pela primeira vez em uma enciclopédia. A única figura que me desagrada é a menina com o aro, vítima demais, apelativa demais, pelo menos até onde posso compreender sua presença.

O artista, criador da Pintura Metafísica, apresenta em suas telas um mundo aparentemente irreal envolvido por espaços urbanos vazios, desabitados e banhados de uma luz fria. Ilustrou livros dos poetas surrealistas Jean Cocteau e Paul Éluard. Obviamente realizou outras coisas.

1.3.07


Os igarapés parecem prender a noite dentro de seus espelhos. A negrura guarda a profundidade, a cobra monstruosa da perenidade. Minha infância é turvada do visgo, do lodo do remanso. A imaginação da criança amazônica é um manancial de assombrações tão prazerosas quanto terríveis. Lá o sol se mantém eternamente crivado pela copa das árvores, um sol inerme.

O abismo das águas é o que me fustiga a imaginação de moleque-bicho.
O rio dos meus medos e brinquedos levou o meu irmão. Num lugar tão permeado de água não seria outro elemento a mais tragar a juventude. Ele foi lá e achou mais do que eu. Achou o termo e decidiu a própria sorte. Há tempos não choro, que estranha saudade essa de chorar. A maturidade me secou as lágrimas e assim, destituído de toda autopiedade, sou árido.
A intimidade com os monstros do rio era o esbarro do peixe boi na canoa fina, não mais que um graveto.

A casa do interior na minha infância eram duas casas; uma noturna, uma diurna. A diurna quase não conhecíamos porque de dia as crianças ganham mundo, vão experimentar os medos das cacimbas, do rio, dos igarapés, da casa de farinha, do além da estrada que, como o fundo do quintal, era o próprio reino do perder-se pra sempre. Mais medo tínhamos do igapó. No igarapé era a mãe-d’água, jacaré, boiúna; mas no igapó era o sumidouro, águas sem fundo onde quem botasse o pé já era pra não mais voltar. Ficava ali perdido dentro d’água entre as raízes, ou afundava pra sempre, sempre afundando até perder o nome e virar o menino do igapó. O mais estranho nesse lugar do medo, o igapó, é que, quem cai ali não morre, vive ali, esquecido, sumido. Aqui em Salvador fiquei longe da morte do meu irmão. Foram-se dez anos sem que o visse. Agora está no fundo do rio.
Minha aridez de estátua jacente deve seguir lamentando numa representação suspensa, eterna e sem lágrimas. Imagino sua sombra com um rosto ainda adolescente mal iluminando o negrume do fundo do rio.