1.11.08

Encenações investigativas e questionadoras de seus próprios processos e linguagem são difíceis de encontrar, quando encontradas muitas carecem de mecanismos eficientes de comunicação. Deve ser esse um daqueles dilemas do pós-modernismo.
Parte de mim (grande parte, toda essa parte que deseja o pertencimento) se contenta com o que se apresenta, no mínimo, coerente. A coerência é o lugar que a muitos parece o refúgio único da eficiência, ela nos acalenta com a possibilidade de que tudo tem um propósito, de que tudo está organizado por uma mente paternal, conciliadora (resquício que o pós-modernismo ainda não conseguiu sacudir pra longe do seu pretenso lombo selvagem). A coerência nos oferece a sensação de missão cumprida, muito necessária ao senso comum, com o qual o artista tenta estabelecer alguma comunicação.

Gostaria de seguir sempre o princípio de que uma obra só pode ser confrontada com suas próprias escolhas, mas às vezes, quando a coerência me escapa, comparo obras cuja similaridade parece, e só a mim parece, razoável; tentando isentar-me o mais possível de fazer qualquer juízo de valor, de qualquer crítica reducionista que me afaste das investigações a que me proponho.

O teatro de animação possui a vantagem de conquistar a identificação do público muito rápida e eficientemente; fator de grande responsabilidade por parte de quem decide fazer teatro de animação, e principalmente de quem se utiliza de um boneco ou objeto já atrativo pela plástica, seja escultórica ou gestual; algo interessante para os que se aproximam do teatro e buscam compreender seu efeito, função e necessidade no espírito humano. Devo deixar claro que, por ‘função e necessidade’ não quero dizer funcionalidade que, muito acentuada no teatro social ou engajado, parece desnecessária à arte.

Assisti muito recentemente ao infanto-juvenil de Juliana Notari intitulado “Sonhos de um Pingüim de Geladeira”, no Sesc Ipiranga, experiência de sua pesquisa sobre solos e que propõe uma animação menos acurada em função dos conteúdos que ela tenciona tratar e da óbvia dificuldade da animação de diversos bonecos e objetos por uma só atriz (a própria Juliana acompanhada do músico Augusto Moralez que, juntos, formam a Companhia DuoAnfíbios). Trata-se de um teatro ‘com bonecos’ (e objetos) e não de um teatro ‘de bonecos’ (uma classificação provisória porque em vários momentos a atriz experimenta a neutralidade em função do boneco).
Outra companhia que propõe algo similar é a InBust que assume ser ‘teatro com bonecos’ centrando o interesse no carisma dos atores. É possível notar que em ambas as companhias existe um esmero na confecção dos bonecos e aqui seria interessante investigar a necessidade de tal.

Independentemente dos exemplos destas duas companhias (que têm uma investigação ampla), mas que em alguns momentos remetem ao que aponto, o trabalho de confecção do boneco parece anteceder ou se dissociar da proposta de encenação, é possível constata-lo quando detalhes de vestuário ou ‘maquiagem’ do boneco não são perceptíveis em cena ou quando mecanismos e articulações propostas pelo bonequeiro são pouco utilizados. Existem casos em que isso não importa e, ainda assim, a encenação se mostra eficiente, ou seja, crível. Lembro agora de um esquete da Usina Contemporânea de Teatro que em 1992, na Fundação Curro-Velho, mostrava, sobre balcão, um boneco de 15 cm, animado por três pessoas que, com varetas, ofereciam o distanciamento necessário para apresentá-lo à platéia numerosa. A personagem era uma bruxa vestida de negro, mas a encenação mostrava Madonna dançando sob o som de “Like a virgin”. Quem não tivesse a oportunidade de ver o boneco de perto acreditaria que foi construído para este fim; não parece ter sido o caso (claro, o simulacro de uma velha em gestos voluptuosos próprios de uma virgem em ebulição constitui uma apelo tragicômico considerável). Longe de viajar em significações e metáforas entre encenação e o boneco escolhido, os atores, com precisão de animação, tornaram o evento crível quebrando, com propriedade, paradigmas do teatro de animação. Sim, porque constitui paradigma o fato de um boneco ser confeccionado especificamente para determinada encenação. Em oposição lembro de trabalhos com lindos bonecos que faziam pouco além de mostrar a habilidade, estética ou mecânica, do construtor. Acredito constituir má fé não oferecer um conteúdo equivalente seja em qualidade de animação, seja em significado. Assim que o boneco seja construído durante ou após o processo de definição da encenação é possível notar o mesmo esmero demonstrando uma dissociação entre estes dois eventos: construção do boneco e encenação. Aqui é possível perceber a confiança, às vezes excessiva, no poder de identificação que o boneco exerce sobre a platéia. Volta aquela premissa de que em arte, como na natureza, menos é mais. Este mínimo de animação e caracterização necessárias para que um boneco ou objeto continue exercendo seu poder é algo também interessante de ser investigado.

Um evento na encenação de “Sonhos de um pingüim de geladeira” muito me chamou a atenção pela graça com que foi pensado. A cozinheira equilibrando sua bandeja de ovos: a atriz sai de traz da geladeira do título simulando o mar, ela dá o texto do capitão: “Remem ovos!” Como se não bastasse o trato eficientemente cômico do trágico da fragilidade humana um dos ovos cai (não sei se foi ‘marca’ ou acaso) e a atriz diz para a platéia, ainda na ‘voz’ do capitão: “Perdemos um”. Conjunto harmonioso e econômico de elementos instigando vários níveis de leitura. Achei, no entanto, desnecessária a caracterização representando rostos humanos nos ovos (o que se repete em outros elementos) fato estranho à proposta de despojamento da encenação. Aí vem a questão dos atributos. O que é um rosto? E nesse momento é inevitável lembrar da encenação de “Desconcerto” de Diana Raznovich dirigida por Juliana Ferrari quando a personagem Irene Delaporta questiona a platéia segurando, após se despir, o vestido estendido diante de si mesma com ambas as mãos: “O que é uma mulher?” Depois solta uma ponta do vestido e, segurando-o com apenas uma das mãos pergunta: “O que é uma mulher nua?!”. Percebo aqui uma questão: Qual atributo é necessário para dizer plasticamente: mulher!? E lá: Rosto!? Ou melhor, (de volta aos ovos) Humano!? As possibilidades de representação do humano são tão numerosas quanto são os humanos, essa diversidade é encantadora.

Assista o vídeo de "Sonhos de um Pinguim de Geladeira" no Youtube clicando aquí.