Fui treinado a não ler. Não deu muito certo. Os livros entravam em casa como contrabando. De todo modo tínhamos uma enciclopédia rota e desatualizada (que eu amava) e a Bíblia (me ensinaram que tem que escrever assim Bíblia, com letra maiúscula). A Bíblia permanecia aberta no salmo XXIII (me ensinaram que tem que escrever assim, com números romanos; deve ser porque os romanos foram legais com os cristãos oficializando a religião).
Minha vó limpava cuidadosamente a Bíblia, mas não lembro se a página do salmo XXIII foi mudada.
Cedo, nas minhas primeiras letras, minha mãe, sempre ao me ver com a cara enfiada em um livro, perguntava “já fez o dever?”, ou então “esse livro é da escola?”
Era o final da década de setenta, a biblioteca da minha escola primária só tinha livro didático, fotografias de Ernesto Geisel e o Manifesto Positivista. Era possível escolher por não ter aulas em troca de ensaios para o desfile do sete de setembro, quando usávamos luvas brancas.
Meu pai também não perdia a oportunidade de insinuar que leitura não era coisa lá muito viril. Devo concordar, só ganhei músculos muito depois da adolescência. Minha vó dizia que ler dava sono e era coisa de preguiçoso, deu um duro nanado pra criar os sete filhos sem um pai, e conseguiu; talvez porque fosse praticamente analfabeta.
Cena de 'O Labirinto do Fauno'
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