25.1.07

A terceira hybris

Descobri a vertigem no embalar da rede. Os pés golpeando a parede para vôos mais e mais altos. As cordas torcidas rangendo modorrentas como os liames de um navio assombrado. Velas depostas porque nada as enfunava. Depois o sono me sedando os impulsos quando o último me entregava ao balanço de voltas cada vez mais curtas até a inércia. À cavilação solitária preferia o sono; o timão livre girando ao prazer das ondas. Era quando ela vinha.
Na minha infância tinha asas.Espreitava desde os caibros suspensos em tramas a sustentar o palheiro ou do cimo da gameleira onde engendrava seus feitiços. Era ela que me pesava as pálpebras e dos músculos das mãos me tirava o tônus; as plumas acariciando meus olhos fechados. Assediava meu sono sedenta de minhas poluções. Nunca a vi, mas suspeitava-lhe fitando-me com um olho de cada vez. Vivia em sobressaltos: de dia um movimento de copa de árvore, uma lufada quente, um redemoinho, de noite os sustos eram o dardejar dos morcegos, dos pombos, das mariposas no fundo da noite em meio ao ressonar dos vivos. Trilava, titilava, guinchava pesando-me sobre o peito até que eu sufocasse e num grito surdo saltasse do fundo de minha queda até a vigília. Os olhos cravos no nada, no tudo. Os lábios ressecados ainda sentiam-lhe o sopro.
Depois, perdidas as penas ganhou escamas. O medo agora era o fundo do rio e seu lodo ameaçando tragar-me para o fundo do nem mais. Do céu inconsútil passou a habitar os igarapés, os igapós, o espiralar de entrecorrentes do rio com o mar onde tudo se perde. Sua estridência deu lugar a sussurros, um gotejar da bica, um murmúrio de regato, um espadanar de bicho no remanso. Tudo o que é côncavo guarda sua voz e o que nela não é voz espreguiça-se nas pedras batidas pelo mar onde quara o sargaço de suas melenas prênseis.
Partilhada a rede não mais me angustiou, partiu a buscar outros núbeis.

5 comentários:

Anônimo disse...

Seu texto parece uma "adivinha", ou um oráculo...E essa hybris, que foi vencida, depois das transformações, desde a infância, me lembrou uma das Fúrias,da Mitologia, com asas de morcego e cabelos de serpente.
Aliás, seu texto todo me lembra a façanha de um herói mitológico, lutando pelo dever que nem ele sabe qual é...
Eu aprecio seu jeito de ser. Não o vejo por aí, no mundo blogueiro.Então, imagino-o retraído, calado, mas atento à rica tessitura de suas linhas... E, de repente, quando me recordo de sua bela escrita, venho, e não me arrependo.
Aprecio-a, deveras!
Um abraço enorme!
Dora

Anônimo disse...

"Tudo o que é côncavo guarda sua voz e o que nela não é voz espreguiça-se nas pedras batidas pelo mar onde quara o sargaço de suas melenas prênseis"...

Fiquei meio de boca aberta. Não cheguei a babar - e olha que um texto tirar minha fala não é pouco não. Adoro teu jeito de escrever, é gostoso e sucinto e completo e com cenas em sépia, prontas para serem jogadas no abismo cinematográfico da mente.

Ah, gostei do "bêjo", hehehe.

Anônimo disse...

Humm, nos e a palavra "modorrenta"...hehehe! Escreves bem, viu?! Parabens! [ desculpe a falta de acentos e afins...]

Luiz Felipe Botelho disse...

Olhaí, seu moço!
Tá vendo que não sou só eu quem gosta do que você escreve?

Se a Aleksandra, com poucas palavras, joga a gente no centro de realidades cotidianas, tu conduezes rapidamente o leitor a uma dimensão paralela de poesia palpável, onde tudo está vivo, respira e dialoga - e as palavras, tão apropriadamente utilizadas, não esgotam significados, pouco explicam e muito sugerem, indicam portais e induzem a mergulhos. Teus textos são incríveis. Deixam um eco no imaginário da gente. Linda essa "rede".
Abração pra ti.

Lua em Libra disse...

Não te li, Fábio: embalei-me. Teu texto-mais-balanço-de-rede me fez simplesmente deixar-me estar, coisa fluida através de imagens, quase etérea. Gostei demais. Não sei fazer comentários técnicos, não sou uma literata. Mas, (não tendo o compromisso de ser literata, posso repetir-me) gostei demais. Quero voltar aqui muitas vezes. Posso?