28.7.07
24.7.07
Leitura doméstica
Fui treinado a não ler. Não deu muito certo. Os livros entravam em casa como contrabando. De todo modo tínhamos uma enciclopédia rota e desatualizada (que eu amava) e a Bíblia (me ensinaram que tem que escrever assim Bíblia, com letra maiúscula). A Bíblia permanecia aberta no salmo XXIII (me ensinaram que tem que escrever assim, com números romanos; deve ser porque os romanos foram legais com os cristãos oficializando a religião).
Minha vó limpava cuidadosamente a Bíblia, mas não lembro se a página do salmo XXIII foi mudada.
Cedo, nas minhas primeiras letras, minha mãe, sempre ao me ver com a cara enfiada em um livro, perguntava “já fez o dever?”, ou então “esse livro é da escola?”
Era o final da década de setenta, a biblioteca da minha escola primária só tinha livro didático, fotografias de Ernesto Geisel e o Manifesto Positivista. Era possível escolher por não ter aulas em troca de ensaios para o desfile do sete de setembro, quando usávamos luvas brancas.
Meu pai também não perdia a oportunidade de insinuar que leitura não era coisa lá muito viril. Devo concordar, só ganhei músculos muito depois da adolescência. Minha vó dizia que ler dava sono e era coisa de preguiçoso, deu um duro nanado pra criar os sete filhos sem um pai, e conseguiu; talvez porque fosse praticamente analfabeta.

Cena de 'O Labirinto do Fauno'
TEATRO DE ANIMAÇÃO IMAGENS, SÍMBOLOS E MITOS

Teatro de Bonecos Tradicional e Teatro de Animação
Imagens
Símbolos
21.7.07
Postagem de amor, ridícula.
Estás aí a dormir teu sono de menino. Sei que só eu te vejo assim. Tua nudez e o linho, quanta dúvida! Meu coração, esse cofre sem segredo, mas que só abre por dentro, tem uma mão exitante que lhe toca a chave pela ponta dos dedos.
Mesmo a flor que ofereces temo esmagar na minha palma bruta.
Teus cílios são guirlandas negras se uma luz, mesmo frágil, te fecha as pálpebras
Quando recuas assim teu olhar como ostra
Só me resta buscar tua boca entreaberta.
Multiplico o entender do que somos
Uma gangorra
Uma saudação
Um gesto
Uma cópula
Um beijo
Um diálogo
Uma bifurcação
Um acorde
Um pás-de-deux
Uma réplica
Uma ambigüidade
Uma dúvida
Uma paralela
Um bis
Uma disputa
Um comércio
Um cumprimento
Um bivalve
Um ambidestro
Uma dicotomia
Um bigode
Uma janela
Um pulsar
Um matrimônio
Um irmão
Um andar
Um acordo
Um binômio
Uma discórdia
Uma parelha
Um duplo
Uma dupla
Um duo
Um dístico
Uma ânfora
Um anfíbio
Um anfiteatro
Uma polaridade
Um bissexual
Uma bissexual
Uma contenda
Uma coabitação
Um binóculo
Um partido
Uma concórdia
Duas bolhas já se consideram espuma
Entrego-me novamente à refrega no tardar da vida
a mão mais firme na brida e um coração que sossega
ao invés de leões centauros movem a quadriga
0 ódio já não me turva a vista, hoje é Amor quem me cega.
Já ansio por te encontrar desde que te despedes. Não tenho o consolo do trigal como o tinha a raposa.
Álvaro de Campos fala!
Também escrevi em meu tempo cartas de amor, como as outras, ridículas.
As cartas de amor, se há amor, têm de ser ridículas.
Mas, afinal, só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas(...)"
19.7.07
Repostagem
A pimeira híbris
Está alí com sua híbris ameaçadora, voluptuosa. Sentada sobre as patas traseiras, lambendo a direita dianteira, a língua rápida mentindo maciez. As asas pousadas sobre as ancas com muito alinho mas sem pudor. Nada me pergunta e até duvido que me perceba ali, detido por sua presença incrível e desdenhosa.Como termina o asseio da pata direita começa o da esquerda a partir do ombro, seu rosto humano se oculta sem que eu tenha tempo de compara-lo a qualquer outro tomado ainda do terror nauseabundo e irresistível provocado pela visão do seu corpo de gato alado.Remói agora a curiosidade de ver-lhe o rosto, nosso único vínculo como criaturas presentes nesse encontro incômodo e estranhamente inevitável; e inevitável por desejável mas de um desejo inconfessável nem sequer pensado, talvez sonhado mas em sonhos esquecidos, desses que ao acordarmos dizemos não ter, naquela noite, nada sonhado.E agora, na expectativa que me fixa o olhar em sua volta de pescoço, tento lembrar-lhe o rosto, senão de agora a pouco pelo menos de nalgum sonho remoto. Nenhum rosto de mulher se encaixaria ali. E agora até me reprovo por supô-la mulher... Toda híbris para um homem é mulher. Não é possível culpar nada mais por suas mais profundas ansiedades.Num repente a criatura pára as lambidas ao ombro e levanta a cabeça ainda sem voltar-me o rosto. Só aí tenho certeza de ser percebido. Ela estática; a pata um pouco levantada e espalmada como pousada sobre o peito invisível do amante a quem rejeita devorar. As patas traseiras se ajeitam alternando o peso da anca, a cauda hipnótica é a última coisa que vejo depois do salto que lhe faz sumir atrás do muro. O guincho sufocado na garganta de um pássaro é o último que ouço denunciando ainda sua existência e me sinto ainda indigno de respirar.
(postado inicialmente aquí em 24 de abril de 2006)
A segunda híbris
A incógnita me burla onde quer que eu possa suspeitá-la. Assim que a percebo na sombra dos móveis ela se torna uma meia, camisa torcida, um trapo, qualquer coisa que expresse inocência fingida. Ela também se oculta nas novas manchas da parede depois da chuva. Se infiltra nos recôndidos, me aguarda num cesto. Mimetiza-se entre os pêssegos recém colhidos ou na tapeçaria pendurada no vão das portas. O que resguarda a memória do tronco de uma árvore alí ela se enrosca em volutas atávicas de quem há muito só sabe tocar as coisas com o todo de seu corpo. Pendura sua cabeça triangulada como o fiel da balança; assim todos os pêndulos me assustam como se ela os possuísse. Ela está na maneira como os líquidos viscosos se derramam. Ela mesma derrama-se em queda surda. O ar suspenso em meus pulmões ajuda-me na petrificação diante de sua sinuosidade. Só assim percebo-a além de sua contenção; fugindo à sua constrição. Petrificar-se é adormecer e também estar alerta à sua especificidade contínua, contígua.
(postado inicialmente aquí em 7 de dezembro de 2006)
A terceira híbris
Descobri a vertigem no embalar da rede. Os pés golpeando a parede para vôos mais e mais altos. As cordas torcidas rangendo modorrentas como os liames de um navio assombrado. Velas depostas porque nada as enfunava. Depois o sono me sedando os impulsos quando o último me entregava ao balanço de voltas cada vez mais curtas até a inércia. À cavilação solitária preferia o sono; o timão livre girando ao prazer das ondas. Era quando ela vinha.Na minha infância tinha asas.Espreitava desde os caibros suspensos em tramas a sustentar o palheiro ou do cimo da gameleira onde engendrava seus feitiços. Era ela que me pesava as pálpebras e dos músculos das mãos me tirava o tônus; as plumas acariciando meus olhos fechados. Assediava meu sono sedenta de minhas poluções. Nunca a vi, mas suspeitava-lhe fitando-me com um olho de cada vez. Vivia em sobressaltos: de dia um movimento de copa de árvore, uma lufada quente, um redemoinho, de noite os sustos eram o dardejar dos morcegos, dos pombos, das mariposas no fundo da noite em meio ao ressonar dos vivos. Trilava, titilava, guinchava pesando-me sobre o peito até que eu sufocasse e num grito surdo saltasse do fundo de minha queda até a vigília. Os olhos cravos no nada, no tudo. Os lábios ressecados ainda sentiam-lhe o sopro.Depois, perdidas as penas ganhou escamas. O medo agora era o fundo do rio e seu lodo ameaçando tragar-me para o fundo do nem mais. Do céu inconsútil passou a habitar os igarapés, os igapós, o espiralar de entrecorrentes do rio com o mar onde tudo se perde. Sua estridência deu lugar a sussurros, um gotejar da bica, um murmúrio de regato, um espadanar de bicho no remanso. Tudo o que é côncavo guarda sua voz e o que nela não é voz espreguiça-se nas pedras batidas pelo mar onde quara o sargaço de suas melenas prênseis.Partilhada a rede não mais me angustiou, partiu a buscar outros núbeis.
(postado inicialmente aquí em 25 de janeiro de 2007)
16.7.07
Pena de dourar páginas
Encontrei-te no espólio dos dias
Pertencestes a um amor perdido?
Quem deitou de ti toda a tinta?
Não te percebi entre os dedos de ninguém.
O que te devo?
Quais foram as palavras não proferidas ou os números nunca discados que te fizeram enjeitada?Depois de cada frase te olho.
És esse ponto vacilante onde te percebo tingir o papel e agora só meus golpes nele te fazem existir.
Um punhal de lenda fere fundo a história que hoje expia
o que calou na garganta dos esquecidos.
Data de validade
Tudo o eu me sobra
Tudo o que me gasta
O que sossobra
O que emplastra
O que coagula e me custa solver.
O que é de mim e não me serve
O que prescreve
Mas insiste
Mas incide
E permanece
O que falta resolver.
Medéia fala
De amar e desamar se faz meu caminho
De amar e desamar cada coisa
Um olhar baço desdenhoso do existir.
Barca sem porto, vontade angelimsólida dos anéis de muito ontem.
Quilha mordaz da barca carôntida.
Página limítrofe do pensamento
Espátula de retirar o teor dos anos.
Coração mesopotâmicoque verte minhas indecisões mais queridas
Rebusquei umas palavras já ditasdesditadas pela falta de uso
quiproquó de coisas interditas
quiz fazê-las e fí-las costumeiras
Uns se apoderam, sou destes,
outros se aglomeram em volta do mediano
Medeiam, que tragédia!
O vão entre a palavra e o gesto é onde se espera compreendê-la.
Mas, plenamente compreendida já é tarde.
Presto jazem os filhos, verdes folhas caídas.
11.7.07
Teatro de formas animadas

O processo de criação pela imagem vem carregado da profusão de significados que só a imagem pode oferecer. Acredito ser uma forma natural de criação que está no cerne do humano. A palavra e a escrita são eventos tão recentes na construção do pensamento que é possível considerá-los atavios rudes para a apresentação do conhecimento à cerca de algo.
A poesia é certamente a forma mais sublime de utilização da linguagem por se aproximar da experiência que uma imagem produz. Estas afirmações, mesmo parecendo corriqueiras, definem minha atenção e crença nas propriedades ancestrais da utilização de bonecos e formas animadas como veículos de uma comunicação eficiente e desencadeadora de reações criativas e vivas no seu momento de consecução. Sua hibridez entre a arte visual e o teatro lhe respalda esta eficiência. A forma animada reporta à percepção mítica antes que ela se torne mitologia.
Parece existir uma diferença entre mito e mitologia no que diz respeito à percepção, no primeiro caso mística e no segundo intelectual. A partir do momento em que um povo passa a pensar, avaliar e mesmo questionar o valor de seus mitos é sinal de que cessou sua crença neles. A experiência mítica dá lugar à mitologia.
O teatro parece produzir conexões com aquela primeira experiência fazendo brotar sentimentos que reavivam os significados arquetípicos. Freqüentemente se diz que o evento teatral é um rito e comunga com este regras e códigos verbais e gestuais para representar uma idéia, ou seja, torna-la novamente presente, consolidando uma cultura. Os gestos e palavras estilizadas recriam o deus, o herói, o animal ou o evento míticos buscando atrair suas capacidades criadoras, destrutivas ou transformadoras.
O simulacro não deixa de ser percebido como tal e ao ser animado reverbera através da visão todos os conteúdos não verbais que carregamos.

O teatro de bonecos partilha do princípio da experiência social humana. Estava lá de forma rudimentar quando o homem percebeu que sua sombra projetada nas paredes das cavernas pela pequena fogueira doméstica causavam impressões eficientes para contar uma história podendo ser moldada em formas inusuais e representar seres ausentes. Estava lá quando, sentados sob uma árvore, extraíram dali um galho que dava a seu possuidor sua vez de falar ao grupo.
Imagens do fotógrafo Stephen Berkman retiradas de 'The New Instantaneous Process Employed'
7.7.07
Memorial
Na janela de tristes sancas que misturam elementos neocoloniais e art-decô pendura-se uma armadura pseudo-espanhola, quixotesca, sobre uma imagem em gesso do Cabôco Boiadeiro e uma escultura pretensiosamente naif de onça cuidadosamente arrumados no parapeito. Avançando porta adentro, ação que despertará, a contragosto, o atendente de seu cochilo, depara-se com uma caixa abarrotada de cartões postais antigos enviados por pessoas que dificilmente aproveitaram suas viagens além da satisfação de terem estado lá. Outra caixa exibe discos de vinil: a coleção completa de várias árias de ópera, trilhas sonoras de filmes de Hollywood e musicais da Broadway, rock dos anos oitenta. Uma mesa ostenta recipientes diversos: uma caneca de plástico com a estampa de ‘Noite estrelada’ de Van Gogh vinda da recepção do Museu de Arte Moderna de Nova York, xícaras ‘limojes’ fabricadas na china, infinitas taças entre as quais se destaca uma com a forma de Mickey Mouse. Sob a mesa entalhes de santos misturam-se a esculturas fálicas africanas. Objetos de desejo ali despejados por pessoas que, ao amadurecerem, venderam-nos por poucas moedas, talvez para pagar a conta de luz ou troca-los por outros fetiches exercitando a mais humana e vital função de migração dos desejos para o que mente liberdade e poder.
Vasculhou o ambiente sem muita noção do que procurava, mas com a avidez de um arqueólogo triste e empoeirado clamando entre as ruínas por algo inédito. Revirando assim conscienciosamente as memórias rejeitadas de outros ele encontrou o que lhe promoveu um gozo de ancestralidade. Não titubeou o preço e fez tilintar suas moedas sobre o balcão com a displicência de quem troca uma vara de porcos por uma pérola barroca. Saiu dali transformado como se tivesse recebido uma hóstia com sabor. O objeto cabia-lhe perfeitamente na palma de uma mão, mas ele preferiu segura-lo com ambas e partiu assim, como em prece, pelas vias estreitas e sórdidas dos setores não beneficiados pela reforma do centro histórico do Pelourinho.

'Isto não é um cachimbo' de Magritte, 1928-29
BUNRAKU


Uma forma ancestral do joruri pode ser encontrada nos biwa hoshi, artistas itinerantes cegos, que cantavam o Heike Monogatari, um épico militar sobre a guerra entre os clãs Taira e Minamoto, acompanhados ao som do biwa, instrumento musical semelhante ao alaúde. No século 16, o shamisen substituiu o biwa e o estilo joruri se desenvolveu. O nome jururi vem de umas das

A arte do teatro de bonecos, combinada com a narrativa cantada e o acompanhamento do shamisen, ganhou popularidade no início do século 17, na cidade do Edo (atual Tóquio), onde recebeu o apoio do shogun e de outros comandantes militares. Muitas das peças daquela época representavam as aventuras de Kimpira, um herói lendário, famoso por sua bravura e ousadia. Foi na cidade mercantil de Osaka, contudo, que o ningyo joruri atingiu seu melhor momento, através do talento de dois homens: o tayu (narrador) Takemoto Gidayu e o dramaturgo Chikamatsu Monzaemon.

Depois de abrir o teatro de bonecos Takemoto-za em Osaka, no ano de 1684, Gidayu dominou o juriri com seu estilo vigoroso, chamado gidayu-bushi. Chikamatsu começou a escrever dramas históricos (jidai-mono) para Gidayu em 1685. Depois disso, de passou mais de uma década escrevendo peças para o kabuki. Em 1703, voltou ao Takemoto-za e, a partir de 1705, dedicou-se exclusivamente ao teatro de bonecos até o fim de sua vida. Muito se discutiu sobre os motivos que o levaram a retornar ao bunraku depois de sua incursão pelo kabuki. Provavelmente, ele estaria insatisfeito com a relação entre autor e ator. As estrelas do kabuki, na época, consideravam a peça apenas uma matéria-prima para a expressão de seus talentos pessoais.
Em 1703, Chikamatsu lançou um novo tipo de teatro de bonecos: o drama doméstico (sewa-mono), que trouxe nova prosperidade ao Takemoto-za. Apenas um mês depois que o empregado de uma loja e uma cortesã cometeram duplo suicídio, Chikamatsu dramatizou o incidente na peça "Os amantes Suicidas de Sonezaki". O conflito entre as obrigações sóciais (giri) e os sentimentos (ninjo) encontrados nesta peça comoveram as platéias da época.



Dramas domésticos, como a série de peças sobre amantes suicidas de Chikamatsu, logo ganharam a preferência do público. Os dramas históricos, entretanto, também continuaram populares e refinaram-se à medida que a audiência se habituou à profundidade psicológica dos dramas domésticos. Um exemplo disso é o Kanadehon Chushingura, talvez a peça mais famosa de bunraku. Baseada no incidente real dos 47 ronin (samurais sem senhor) de

Ao longo do século 18, o bunraku desenvolveu-se numa relação de competição e cooperação com o kabuki. Na encenação, os atores do kabuki imitavam os movimentos característicos dos bonecos de bunrabu e o estilo de canto tayu, enquanto os titereiros adaptavam os floreios estilísticos de atores famosos do kabuki. Nas produções, muitas obras de bunraku, especialmente as de Chikamatsu, foram adaptadas para o kabuki, ao passo que espetáculos vistosos ao estilo kabuki foram encenados no bunraki.
Gradualmente ofuscado pelo sucesso do kabuki, o bunraku entrou em declínio comercial a partir do fim do século 18. Um a um, todos os teatros fecharam suas portas, exceto o Bunraku-za. Desde o pós-guerra, o bunraku depende do apoio governamental para sobreviver, embora sua popularidade tenha crescido nos últimos anos. Atualmente, sob os auspícios das Associações de Bunraku, apresentações regulares são realizadas no Teatro Nacional de Tóquio e no Teatro Nacional de Bunraku de Osaka. Fora do Japão, turnês de bunraku foram recebidas com grande entusiasmo em diversos países.
Bonecos e encenação

Medindo de metade a dois terços da estatura de uma pessoa, os bonecos de bunraku são montados com peças independentes: cabeça de madeiras, armação dos ombros, tronco, braços, pernas e trajes. A cabeça é sustentada por um cabo com fios para mover os olhos, a boca e as sobrancelhas. Esse cabo encaixa-se num orifício no centro da armação dos ombros. Dessa mesma armação, pendem braços e pernas, ligados através de fios. Um aro de bambu simula o quadril. O traje ajusta-se sobre o ombro e o tronco. Os bonecos femininos na maioria das vezes possuem faces imóveis e, como o longo kimono cobre toda a metade inferior do corpo, não precisam ter pernas.
Há cerca de 70 tipos diferentes de cabeças. Classificadas em diversas categorias como "moça solteira" ou "rapaz valente", cada cabeça é usada para vários papéis, embora seja comumente designada pelo o nome da personagem de sua primeira apresentação.

O omozukai (manipulador principal) introduz sua mão esquerda por uma abertura nas costas do traje e segura o cabo de sustentação da cabeça. Com sua mão direita, ele move o braço direito do boneco. Sustentar com a mão esquerda o boneco de um guerreiro, que chega a pesar 20kg , pode ser um exercício de resistência. O braço esquerdo é movimentado pelo hidarizukai(primeiro assistente)enquanto as pernas são manipuladas pelo ashizukai (segundo assistente), que ainda produz efeitos sonoros e marca o ritmo do shamisen com as batidas de seus pés. Nos bonecos femininos, o ashizukai movimenta o tecido do kimono simulando os movimentos das pernas.
Na época de Chikamatsu, cada boneco era manipulado por um único titereiro, que não era visto pelo público. A interação de três manipuladores só surgiu no século 18. Hoje em dia, todos os três titereiros permanecem em cena. Eles usam trajes pretos e um capuz, que os torna simbolicamente invisíveis. Considerado uma celebridade no universo do bunraku, o manipulador principal freqüentemente trabalha sem o capuz e, em alguns casos, veste um traje branco.

Assim como os manipuladores, também o shamisen e o narrador tayu só apareceram às vistas do público no século 18, quando foi criada para eles uma plataforma especial, à direta do palco, onde se apresentam até hoje. O tayu possui, tradicionalmente, o status mais elevado dentro de uma troupe de bunraku: como narrador, ele cria a atmosfera da peça e dá voz apropriada a cada papel.O shamisen proporciona mais do que um simples acompanhamento musical. Como os manipuladores, o narrador e o músico não se olham durante a apresentação, este último se encarrega de marcar, com o som das cordas do shamisen, o andamento da peça. Em apresentações grandes ou inspiradas na grandiloqüência do kabuki, múltiplos pares tayu-shamisen são empregados.

'Os bonecos de barro'
"O que ela amava acima de tudo era fazer bonecos de barro — o que ninguém lhe ensinara. — Trabalhava numa pequena calçada de cimento em sombra, junto à última janela do porão. Quando queria com muita força ia pela estrada até ao rio. Numa de suas margens, escalável embora escorregadia, achava-se o melhor barro que alguém poderia desejar: branco, maleável, pastoso: frio. Só em pegá-lo, em sentir sua frescura delicada, alegrezinha e cega, aqueles pedaços timidamente vivos, o coração da pessoa se enternecia úmido quase ridículo. Virgínia cavava com os dedos aquela terra pálida e lavada — na lata presa à cintura iam se reunindo os trechos amorfos. O rio em pequenos gestos molhava-lhe os pés descalços e ela mexia os dedos úmidos com excitação e clareza. As mãos livres, ela então cuidadosamente galgava a margem até a extensão plana . No pequeno pátio de cimento depunha a sua riqueza. Misturava o barro à água, as pálpebras frementes de atenção — concentrada, o corpo à escuta, ela podia obter uma porção exata de barro e de água numa sabedoria que nascia naquele mesmo instante, fresca e progressivamente criada. Conseguia uma matéria clara. e tenra de onde se poderia modelar um mundo.
Como, como explicar o milagre... Ela se amedrontava pensativa. Nada dizia, não se movia, mas interiormente sem nenhuma palavra repetia: Eu não sou nada, não tenho orgulho, tudo me pode acontecer; se quiser, me impedirá de fazer a massa de barro; se quiser, pode me pisar, me estragar tudo; eu sei que não sou nada. Era menos que uma visão, era uma sensação no corpo, um pensamento assustado sobre o que lhe permita conseguir tanto barro e água e diante de quem ela devia humilhar-se com seriedade . Ela lhe agradecia com uma alegria difícil, frágil e tensa; sentia em alguma coisa como o que não se vê de olhos fechados. Mas o que não se vê de olhos fechados tem uma existência e uma força, como o escuro, como a ausência — compreendia-se ela, assentindo feroz e muda com a cabeça. Mas nada sabia de si, passaria inocente e distraída pela sua realidade sem reconhecê-la; como uma criança, como uma pessoa.Depois de obtida a matéria, numa queda de cansaço ela poderia perder a vontade de fazer bonecos. Então ia vivendo para a frente como uma menina.Um dia, porém, sentia seu corpo aberto e fino, e no fundo uma serenidade que não se podia conter, ora se desconhecendo, ora respirando trêmula de alegria, as coisas incompletas. Ela mesma insone como luz — esgazeada, fugaz, vazia, mas no íntimo um ardor que era vontade de guiar-se a uma só coisa, um interesse que fazia o coração acelerar-se sem ritmo... de súbito, como era vago viver. Tudo isso também poderia passar, a noite caindo repentinamente, a escuridão fresca sobre o dia morno.
Mas às vezes ela se lembrava do barro molhado, corria alegre e assustada para o pátio: mergulhava os dedos naquela mistura fria, muda e constante como uma espera; amassava, amassava, aos poucas ia extraindo formas. Fazia crianças, cavalos, uma mãe com um filho, uma mãe sozinha, uma menina fazendo coisas de barro, um menino descansando, uma menina contente, uma menina vendo se ia chover, uma flor, um cometa de cauda salpicada de areia lavada e faiscante, uma flor murcha com sol por cima, o cemitério do Brejo Alto, uma moça olhando... Muito mais, muito mais. Pequenas formas que nada significavam, mas que eram na realidade misteriosas e calmas. Às vezes alta como uma árvore alta, mas não eram árvores, m:to eram nada...Ás vezes um pequeno objeto de forma quase estrelada, mas sério e cansado como uma pessoa. Um trabalho que jamais acabaria, isso era o que de mais bonito e atento ela já soubera. Pois se ela podia fazer o que existia e o que não existia!...
Depois de prontos, os bonecos eram colocados ao sol. Ninguém lhe ensinara, mas ela os depositava nas manchas de sol no chão, manchas sem vento nem ardor. O barro secava mansamente, conservava o tom claro, não enrugava, não rachava. mesmo quando seco parecia delicado, evanescente e úmido. E ela própria podia confundi-lo com o barro pastoso. As figurinhas assim, pareciam rápidas, quase como se fossem se desmanchar — e isso era como se elas fossem se movimentar. Olhava para o boneco imóvel e mudo. Por amor ou apenas prosseguindo o trabalho ela fechava os olhos e se concentrava numa força viva e luminosa, da qualidade do perigo e da esperança, numa força de sede que lhe percorria o corpo celeremente com um impulso que se destinava à figura. Quando, enfim, se abandonava, seu fresco e cansado bem-estar vinha de que ela podia enviar, embora não soubesse o que, talvez. Sim ela às vezes possuía um gosto dentro do corpo, um gosto alto e angustiante que tremia entre a força e o cansaço — era um pensamento como sons ouvidos, uma flor no coração: Antes que ele se dissolvesse, maciamente rápido, no seu ar interior, para sempre fugitivo, ela tocava com os dedos num objeto, entregando-o. E, quando queria dizer algo que vinha fino, obscuro e liso — e isso poderia ser perigoso — ela encostava um dedo apenas, um dedo pálido, polido e transparente, um dedo trêmulo de direção. No mais agudo e doído do seu sentimento ela pensava: Sou feliz. Na verdade, ela o era nesse instante, e se em vez de pensar: Sou feliz, procurava o futuro, era porque, obscuramente, escolhia um movimento para a frente que servisse de forma à sua sensação.
Assim juntara uma procissão de coisas miúdas. Quedavam-se quase despercebidas no seu quarto. Eram bonecos magrinhos e altos como ela mesma. Minuciosos, ligeiramente desproporcionados, alegres, um pouco perplexos — às vezes, subitamente, pareciam um homem coxo rindo. Mesmo suas figurinhas mais suaves tinham uma imobilidade atenta como a de um santo. E pareciam inclinar-se, para quem as olhava, também como os santos. Virgínia podia fitá-las uma manhã inteira, que seu amor e sua surpresa não diminuiriam.
— Bonito... bonito como uma coisinha molhada, dizia ela excedendo-se num ímpeto imperceptível e doce.Ela observava: mesmo bem acabados, eles eram toscos como se pudessem ainda ser trabalhados. Mas vagamente, ela pensava que nem ela nem ninguém poderia tentar aperfeiçoá-los sem destruir sua linha de nascimento . Era como se eles só pudessem se aperfeiçoar por si mesmos, se isso fosse possível.As dificuldades surgiam como uma vida que vai crescendo. Seus bonecos, pelo efeito do barro claro, eram pálidos. Se ela queria sombreá-los não o conseguia com o auxílio da cor, e por força dessa deficiência aprendeu a lhes dar sombra ainda por meio de forma. Depois inventou uma liberdade: com uma folhinha seca sob um fino traço de barro conseguia um vago colorido, triste assustada quase inteiramente morto. Misturando barro à terra, obtinha ainda outro material menos plástico, porém mais severo e solene. MAS COMO FAZER O CÉU? Nem começar podia! Não queria nuvens — o que poderia obter, pelo menos grosseiramente — mas o céu, o céu mesmo, com sua existência, cor solta, ausência de cor. Ela descobriu que precisava usar uma matéria mais leve que não pudesse sequer ser apalpada, sentida, talvez apenas vista, quem sabe! Compreendeu que isso ela conseguiria com tintas.E às vezes numa queda, como se tudo se purificasse, ela se contentava em fazer uma superfície lisa, serena, unida, numa simplicidade fina e tranqüila."*



*Texto publicado na revista "Nordeste", Ano XIII, nº 2, julho de 1960, Recife-PE. Faz parte do romance "O Lustre", publicado em 1946. Encontrei no site 'Releituras' de Arnaldo Nogueira Jr. Indicação de minha amiga Renata Barão, intusiasta do teatro de bonecos.
**Imagens do filme alemão 'Der Golem - Wie er in die Welt Kam', 1920 de Paul Wegener
No 'Filmescópio' ótimo comentário sobre o filme de Paul Weneger com link para assisti-lo no google vídeo. Querendo ir direto ao filme clique aquí, dura 1h e 41min.
Sobre seres artificiais no cinema ler a excelente matéria de Adriana Schiyver Kurtz
Tem esta 'fotonovela' do sociólogo e criminalista Tulio Kahn baseada no seguinte poema de Jorge Luiz Borges:
El Golem
Si (como el griego afirma en el Cratilo)
El nombre es arquetipo de la cosa,
En las letras de rosa está la rosa
Y todo el Nilo en la palabra Nilo.
Y, hecho de consonantes y vocales,
Habrá un terrible Nombre, que la esencia
Cifre de Dios y que la Omnipotencia
Guarde en letras y sílabas cabales.
Adán y las estrellas lo supieron
En el Jardín. La herrumbre del pecado
(Dicen los cabalistas) lo ha borrado
Y las generaciones lo perdieron.
Los artificios y el candor del hombre
No tienen fin. Sabemos que hubo un día
En que el pueblo de Dios buscaba
el Nombre En las vigilias de la judería.
No a la manera de otras que una vaga
Sombra insinúan en la vaga historia,
Aún está verde y viva la memoria
De Judá León, que era rabino en Praga.
Sediento de saber lo que Dios sabe,
Judá León se dio a permutaciones
de letras y a complejas variaciones
Y al fin pronunció el Nombre que es la Clave.
La Puerta, el Eco, el Huésped y el Palacio,
Sobre un muñeco que con torpes manos labró,
para enseñarle los arcanos De las Letras,
del Tiempo y del Espacio.
El simulacro alzó los soñolientos
Párpados y vio formas y colores
Que no entendió, perdidos en rumores
Y ensayó temerosos movimientos.
Gradualmente se vio (como nosotros)
Aprisionado en esta red sonora
de Antes, Después, Ayer, Mientras, Ahora,
Derecha, Izquierda, Yo, Tú, Aquellos, Otros.
(El cabalista que ofició de numen
A la vasta criatura apodó Golem;
Estas verdades las refiere Scholem
En un docto lugar de su volumen.)
El rabí le explicaba el universo
"Esto es mi pie; esto el tuyo; esto la soga.
" Y logró, al cabo de años, que el perverso
Barriera bien o mal la sinagoga.
Tal vez hubo un error en la grafía
O en la articulación del Sacro Nombre;
A pesar de tan alta hechicería,
No aprendió a hablar el aprendiz de hombre,
Sus ojos, menos de hombre que de perro
Y harto menos de perro que de cosa,
Seguían al rabí por la dudosa
penumbra de las piezas del encierro.
Algo anormal y tosco hubo en el Golem,
Ya que a su paso el gato del rabino Se escondía.
(Ese gato no está en Scholem Pero,
a través del tiempo, lo adivino.)
Elevando a su Dios manos filiales,
Las devociones de su Dios copiaba
O, estúpido y sonriente, se ahuecaba
En cóncavas zalemas orientales.
El rabí lo miraba con ternura
Y con algún horror. ¿Cómo (se dijo)
Pude engendrar este penoso hijo
Y la inacción dejé, que es la cordura?
¿Por qué di en agregar a la infinita
Serie un símbolo más? ¿Por qué a la vana
Madeja que en lo eterno se devana,
Di otra causa, otro efecto y otra cuita?
En la hora de angustia y de luz vaga,
En su Golem los ojos detenía.
¿Quién nos dirá las cosas que sentía Dios,
al mirar a su rabino en Praga?
5.7.07
Mulheres na arte
Vídeo produzido por Philip Scott Johnson
Com A Sarabanda de Bach da Suite para Solo de Cello No. 1 in G Major executada por Yo-Yo Ma
Aquí é possível reconhecer as obras, os pintores, a ordem e o tempo em que aparecem no vídeo
1.7.07
O Mambembe


