7.7.07

Memorial

Entre o Carmo e a Igreja do Boqueirão, onde as casas coloniais parecem todas dividir a mesma parede, entranha-se um brechó, desses montados depois que brechó virou moda e passou a ter uma função em conjuntos históricos recém domesticados. Alí é possível encontrar de tudo o que não se precisa, mas que, por comover e emprestar um aspecto físico a algo que não foi vivido e com o qual se partilha uma identidade suspeita, passam a visitá-lo todos os descontentes com seus próprios significados.
Na janela de tristes sancas que misturam elementos neocoloniais e art-decô pendura-se uma armadura pseudo-espanhola, quixotesca, sobre uma imagem em gesso do Cabôco Boiadeiro e uma escultura pretensiosamente naif de onça cuidadosamente arrumados no parapeito. Avançando porta adentro, ação que despertará, a contragosto, o atendente de seu cochilo, depara-se com uma caixa abarrotada de cartões postais antigos enviados por pessoas que dificilmente aproveitaram suas viagens além da satisfação de terem estado lá. Outra caixa exibe discos de vinil: a coleção completa de várias árias de ópera, trilhas sonoras de filmes de Hollywood e musicais da Broadway, rock dos anos oitenta. Uma mesa ostenta recipientes diversos: uma caneca de plástico com a estampa de ‘Noite estrelada’ de Van Gogh vinda da recepção do Museu de Arte Moderna de Nova York, xícaras ‘limojes’ fabricadas na china, infinitas taças entre as quais se destaca uma com a forma de Mickey Mouse. Sob a mesa entalhes de santos misturam-se a esculturas fálicas africanas. Objetos de desejo ali despejados por pessoas que, ao amadurecerem, venderam-nos por poucas moedas, talvez para pagar a conta de luz ou troca-los por outros fetiches exercitando a mais humana e vital função de migração dos desejos para o que mente liberdade e poder.
Vasculhou o ambiente sem muita noção do que procurava, mas com a avidez de um arqueólogo triste e empoeirado clamando entre as ruínas por algo inédito. Revirando assim conscienciosamente as memórias rejeitadas de outros ele encontrou o que lhe promoveu um gozo de ancestralidade. Não titubeou o preço e fez tilintar suas moedas sobre o balcão com a displicência de quem troca uma vara de porcos por uma pérola barroca. Saiu dali transformado como se tivesse recebido uma hóstia com sabor. O objeto cabia-lhe perfeitamente na palma de uma mão, mas ele preferiu segura-lo com ambas e partiu assim, como em prece, pelas vias estreitas e sórdidas dos setores não beneficiados pela reforma do centro histórico do Pelourinho.





'Isto não é um cachimbo' de Magritte, 1928-29

5 comentários:

Luci Lacey disse...

Oi Fabio

Quanta criatividade, lindo seus blogs, parabens.

Vou linka-lo no Hippos tambem.

Abracos e vamos continuar nos visitando

Anônimo disse...

Ao mexer no tempo tornou-se atemporal. Ao encontrar o que queria, baforadas de alegria vieram ao abstrato da sua celebração.
Cadinho RoCo

Bokapiu disse...

Grata surpresa conhecer seu blog. Obrigado pelas palavras elogiosas. Em tempo: Essa semana li esse texto "Isto não é um cachimbo" de Magritte em algum lugar que não recordo e agora me deparo com a ilustração por aqui. Bom sinal!

http://www.bokapiu.blogger.com.br/

Loba disse...

Que prazer encontrar este texto, Fábio. Era disso que sentia falta. deste seu olhar agudo na alma de coisas e pessoas. Porque um brechó tem almas, embora eu nunca tenha pensado neles desta forma tão poética!
Prazer mesmo!
Beijãozão
PS. O texto sobre o cachimbo de Magritte, a que se refere o Johnny, é do meu amigo Carito - http://www.ospoetaseletricos.com.br/

Anônimo disse...

Sinais de fumaça internética... Fumamos aqui o mesmo cachimbo... Paz com vista para o Magritte! Belíssimo texto de um homem de grande fabiodoria, em sábio blogoratório...