29.8.06

Algo de 'Amor e Loucura'

Gostaria de escrever diretamente sobre o novo espetáculo do grupo A Roda, mas estou por demais imbuído do processo. Deixo aquí um poema de Louise Labè ( traduzido, vou buscar o original em francês para quem gosta,
considero este poema um tanto mais de Sérgio Duarte) e outro de Myrian Fraga. É certo que, no espetáculo não há uma só linha dos escritos de Louise Labè ( pesquisamos a tradução de Felipe Fortuna, aproveitamos da poeta seissentista apenas algo do argumento). Convidamos a poetisa baiana Myrian Fraga para nos dar voz. Há que citar aquí o trecho de outro poema de Myrian Fraga que traduz as duas personagens principais da peça e nossa compreenção delas :

"Eu sou fragil e cruel
tu és manso e assassino"
(reservo aquí o lugar para citar o livro e o título do poema de Myriam Fraga os quais acabo de esquecer)


Vivo e morro e me afogo em chama ardente;
Sinto calor extremo e extremo frio
Meu caminho é, ora sombrio,
E em meio a grande pena estou contente.
Choro e me rio simultaneamente
E na alegria meu tormento expio;
Duradouro é meu bem, mesmo arredio,
Sou planta seca e ramo florescente.
Assim me leva Amor, sempre inconstante,
Pois quanto mais me doem minhas dores
Sem que perceba encontro alívio adiante.
Se do prazer, porém, gozo os favores
E se aproxima o desejado instante,
Amor me atira às penas anteriores.

Louise Labé
(Tradução de Sérgio Duarte)
Do livro: "Três Mulheres Apaixonadas", Companhia das Letras, 199, SP



Esta noite em Angico
a brisa é calma.
No silêncio farfalham minhas anáguas
Como farfalham asas
E no escuro minha carne cheira a mato.
Vem meu amor e lavra
Este roçado
Como quem quebra
Um cântaro,
Como que lava
A casa;
Águas frescas na tarde.
Tuas límpias carícias,
Teus dedos como pássaros
E teu corpo que arde
Como estrelas
No espaço.
Não quero tua candeia,
Só meus sonhos acesos
E eu te direi de nácar
Terciopelo,
Coisas antigas, pelo de leoa; voz de cego na feira,
Não quero teu braseiro,
Tua intensa cintilação que queima meus vestidos
Só quero a tua volta,
Tua presença
Iluminando a noite
Que me cerca
Como uma luz acesa
No postigo.
Que sabes de minha vida
Além da morte
Inquieta que me ronda?
Que sabe desta chita
Destes panos
Que envolvem minha nudez
Como uma chama?
São teu olhos carvões que me devoram,
São teus beijos
Fosforescências de mel,
Travo forte das frutas.
Teus dedos como setas
Apontam meu destino:
Meu caminho,
Na planta de teus pés;
Meu horizonte,
No risco de tuas mãos
E meus cabelos
Esparsos sobre a relva
Em que me habitas.
Sou teu medo, teu sangue,
Sou teu sono,
Tua alpercata
De couro,
Teu olho cego, miragem
Dos vidros
Com que miras
A mira do mosquete.
Sou teu sabre,
Facão com que degolas.
Sou o gosto de sal,
Veneno que espalharam
No prato.
Sou a colher de prata
Azinhavrada.
Sou teu laço
Teu lenço
No pescoço.
Sou teu chapéu de couro
Constelado
Com estrelas de prata
Sua a ponta
Do teu punhal buscando
O peito dos macacos.
Sou teu braço,
A cartucheira cruzada
Sobre o peito,
Sou teu leito
De angico e alecrim
Sou a almofada
Em que deitas a face,
O cheiro agreste
Dos homens que mataste.
sou a bainha
E a lâmina é meu resgate.
Sou tua fera.
Sussuarana
No escuro - bote e salto.
Jaguatirica acesa nestes altos
Mundéus de teu alarme.
Sou o parto
Da morte que te espreita.
Sou teu guia
Tua estrela, teu rastro, tua corja.
Sou tua mãe que chora,
Sou tua filha.
Teu cachorro fiel,
Tua égua parida.
Sou a roseta na carne,
O lombo nas esporas.
Sou montaria e cavalo,
Fúria e faca.
Ferro em brasa na espádua
Sou teu gado,
Tua mulher, tua terra,
Tua alma,
Tua roça.
Coivara
Que incendeias e apagas,
Tua casa.
Areia no sapato.
Sou a rede
Aberta como um fruto,
Sou soluço.
Fome escura
De poço.
Sou a caça
Abatida.
Lebre e gato,
Coisas quentes ao tato.
Vem, meu dono, meu sócio,
Meu comparsa.
Desarma o teu cansaço,
Desata a cartrucheira,
A noite é farta
Como besta no cio,
A noite é vasta.
Vem, devagar
E habita meu silêncio
Como se habita
Um claustro.
Lâminas.
Como espadas.
Pasto de aves meu corpo
Que trabalhas
Como quem corta e lavra.
Desata a cartucheira,
Teu campo de batalha
Sou eu.
Por um momento
Esquece o que te mata- fúria e falta -
E enquanto a noite é calma
Vem e apaga
Na pele do meu peito
Esta fome sem data.

Maria Bonita de Myrian Fraga

5 comentários:

Anônimo disse...

Imagino que teu trabalho seja deveras prazeroso. Quanto as palavras da poetisa, o que dizer se nao: -Bravo! Abraço

Anônimo disse...

Trabalhar com este tipo de coisa deve ser quase uma dádiva. E claro, nem se nota como "trabalho" né? Muito bom. Versos ótimos. Abração.

Saramar disse...

Nem sei comentar tanta beleza.
Fiquei muda e invejosa, de você e delas, as poetas e suas palavras.

Beijos

Barbara disse...

O meu coração ficou calado. Nossa.

Passageira disse...

Fábio, que maravilha! Depois de ler o poema dá pra entender como vc se sentiu. E dá tb pra sentir suas cores (plangiando vc! rs...)
Realmente maravilhoso!!!
Beijos querido